Nosso futuro no lixo

“Os Bilhões Jogados no Lixo”, do professor da Universidade de São Paulo Sabetai Calderoni, deveria ser leitura obrigatória de todos os brasileiros. Em seu livro, Sabetai demonstra, primeiro, o quanto a cultura do desperdício faz parte do nosso dia a dia, segundo, que o conceito que temos de lixo, apreendido desde a escola primária, é absolutamente equivocado, e, por último, que o mesmo lixo que hoje nós custa tanto dinheiro e gera tanta dor de cabeça poderia se transformar em uma fonte de geração de divisas, empregos e solucionar em grande parte os problemas sociais do Brasil.

O lixo é o único produto com valor economicamente negativo. Isso quer dizer, paga-se pela matéria prima lixo sem que, ao final do ciclo de processamento, se agregue à essa algum valor econômico. Isso quer dizer, ainda, que o lixo gerado, em grande parte por aqueles que possuem em excesso, representa um custo à administração pública que deveria estar, em tese preocupada em prover a subsistência dos que pouco ou nada tem.

Esses que pouco ou nada tem representam no nosso país vinte e três milhões de habitantes. Vinte e três milhões de pessoas sem acesso a pelo menos 75% de suas necessidades calóricas. Vinte e três milhões de Brasileiros com fome, miseráveis segundo a Organização Mundial de Saúde.

Que existe comida suficiente para toda essa gente já é fato conhecido. Descobrir que essa quantidade de alimentos está em grande parte disponível não apenas nas mesas por demais fartas, mas no lixo, é o que causa a maior surpresa. Diariamente, 39 000 toneladas de alimentos são descartados, jogados fora, por razões puramente comerciais e estéticas. Verduras e legumes imperfeitos, produtos derivados do leite que ultrapassaram o seu prazo de validade; carnes e peixes esquecidos no fundo da geladeira. Só o aproveitamento dessa quantidade enorme de alimentos mais do que 14 bilhões de quilos de comida seriam o suficiente para alimentar 19 dos 23 milhões de miseráveis brasileiros. Ou seja, mais de 80% do problema da fome estaria solucionado.

O problema principal, entretanto, reside não só em evitar o desperdício, mas também em fazer com que o alimento descartado chegue aos que tem fome. O maior entrave, passa a ser, a partir desse momento, não falta de vontade de ajudar, mas as dificuldades criadas pela Lei àqueles que efetivamente ajudam. Leis que deveriam proteger os desprotegidos.

Por incrível que pareça, empresas e particulares evitam doar com medo das conseqüências legais que possam advir de seus atos. Ninguém gostaria de ser processado por homicídio, por lesão corporal ou por perdas e danos, por ter doado um alimento estragado. Situações como essa levam à iniciativas políticas aparentemente paradoxais: Um Projeto de Lei do Senador Lúcio Alcântara, de 1997, busca eximir de responsabilidades os que doam alimentos, desde que comprovada a boa fé do doador. O projeto espelha-se em iniciativa similar adotada nos Estados Unidos. A partir da aprovação da “Lei do Bom Samaritano”, o volume de doações de alimentos em espécie saltaram do patamar de 1%, no ano da aprovação da medida 1996 – para 9% em 1997.

O ordenamento jurídico tributário nacional também dá a sua colaboração na criação de dificuldades aos doadores de alimentos. O IPI, Imposto sobre Produtos Industrializados, continua incidindo sobre alimentos que venham a ser doados. Via de regra, essa imposto é transferido ao consumidor, no preço final do produto. Ao incidir sobre às doações, o imposto onera exclusivamente o interessado em praticar o bem. Ainda tratando da carga tributária: O vendedores, supermercados, lojistas e restaurantes respondem por perto de 28 das 39 000 toneladas desperdiçadas. Ainda que houvesse, por parte desses setores, a intenção em dar melhor destino aos seus excedentes, não estariam estes livres da aplicação do ICMS sobre os alimentos oferecidos.

Deixando de lado os alimentos desperdiçados, isso é, aqueles alimentos jogados no lixo mas que poderiam, havendo uma maior preocupação das autoridades, ser imediatamente aproveitados, resta ainda uma montanha de lixo orgânico não aproveitável para o consumo humanos imediato. São alimentos efetivamente decompostos, restos de animais e plantas, resíduos industriais não consumíveis. O lixo orgânico representa 49% de todo o lixo produzido no país, algo em torno de 280 000 toneladas por dia. Essa montanha de sujeira poderia ser aproveitada, de maneira relativamente barata, pela utilização mais disseminada da compostagem.

Através da compostagem, submete-se material orgânico à ação de bactérias sobre condições de elevada temperatura e pressão, gerando como subprodutos adubo natural orgânico e gás metano. Só 0,9% do lixo orgânico brasileiro é compostado. Se todo o material orgânico produzido fosse compostado, o gás metano final gerado seria suficiente para movimentar uma usina termoelétrica com capacidade de 2 000 megawatts, o que representa, em termos de energia gerada 3,6 bilhões de reais. Dinheiro que poderia ser investido em obras assistências e no amparo à produção.

Produção de materiais recicláveis, por exemplo. A demanda por produtos reciclados, em tempos ecologicamente corretos, tem aumentado vertiginosamente. De acordo com o Professor Sabetai, a reciclagem poderia gerar 120 000 empregos, diretos e indiretos. Um oportunidade de inclusão social e de aquecimento econômico que vem sendo sistematicamente desprezada.

Estima-se que 76% do lixo orgânico acabe nos lixões a céu aberto. Toda essa montanha de sujeira tem um efeito devastador sobre o meio ambiente. O lixo propicia a proliferação de vetores de doenças graves. Ratos, baratas e mosquitos encontram um habitat perfeito nas montanhas de lixo deixadas ao relento. O “chorume” produzido contamina às águas superficiais e compromete a utilização dos lençóis freáticos. O gás metano, que poderia ser usado na geração de energia, ajuda na destruição da camada de ozônio. Isso sem falar no desequilíbrio ambiental, na degradação social e nos riscos imediatos à saúde da população trazidos por esses lixões.

O desequilíbrio ambiental reflete-se nas alterações climáticas. Essas, por sua vez, representam mais gastos. Gastos com alimentos perdidos pela seca; gastos em estradas que serviriam para transportar alimentos inutilizadas pelas enchentes. Gastos em implementos que encarecem o plantio e a colheita.

As prefeituras gastam de 5 a 12% do seu orçamento com o manejo de detritos e limpeza pública. Esses gastos, até então, não tem sido entendidos como uma oportunidade de ganho ou de diminuição de diferenças sociais . Se consideramos o orçamento municipal como um todo, e se, dentro desse orçamento, considerarmos os gastos com saúde e re-inclusão social das famílias diretamente em contato com os lixões somados aos gastos com o manejo de detritos chegaremos à cifras assustadoras.

Enquanto não forem tomadas medidas voltadas ã conscientização da população para por fim desperdício, enquanto não forem tomadas medidas que visem facilitar a doação e a reciclagem; a compostagem e a geração de energia alternativa continuaremos a perder dinheiro. Continuaremos a ver nossas chances de desenvolvimento irem para o lixo.

Aristides Athayde

é advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba, mestre pela Northwestern University Chicago. Former Chairperson da Camâra de Comércio Brasil EUA (AMCHAM), membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC International Chamber of Commerce

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