Os outros dois Sócrates

Numa crônica recente, tive oportunidade de apresentar ao leitor o Sócrates que o discípulo Platão nos oferece, em alguns dos seus diálogos magistrais, como é o caso de Mênon, Fedro, Banquete, Fédon, Críton, Cármides, Teeteto e a Apologia. Mas há outros dois ?retratos? socráticos que não podem ser esquecidos: o do historiador Xenofonte e o do teatrólogo Aristófanes.

O notável historiógrafo de Anabasis, no seu livro Recordações sobre Sócrates, nos mostra o filósofo ambulante sob uma ótica que não é a de Platão, essa sobretudo idealista e transfiguradora. Enquanto o Sócrates de Platão é quase um semideus homérico, pela inteligência e pela virtude, o de Xenofonte parece mais equilibrado, comedido, realista. Tem a exata medida do homem de qualidades, intelectuais e morais, mas não chega a ser superestimado. Não é um semideus. Nem um super-homem.

Já o Sócrates que nos é mostrado por Aristófanes, na qualidade de protagonista da sua famosa comédia As nuvens, é uma figura caricata: um misto de charlatão, embusteiro, trapalhão, boquirroto, bufão. Muito longe, portanto, dos ?retratos? pintados por Platão e Xenofonte.

O que levou o grande teatrólogo, companheiro de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, a essa distorção premeditada, se não maldosa, do filósofo? Certamente, o espírito de vingança. Aristófanes procurou vingar-se das críticas formuladas por Sócrates a algumas das suas peças anteriores. Freud explicaria a reação do autor da hilariante comédia.

Seja como for, a tentativa de demolição, premeditadamente exercitada pelo comediógrafo, nem de leve empana o brilho ou ofusca a luminosidade irradiante do Sócrates platônico, de quem se poderia dizer, como Eça disse de Antero, concluindo o seu admirável panegírico, ?que era um gênio e era um santo?. O mestre excelso de Platão o era, em toda a plenitude. 

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