Noturno em sol maior para flauta doce e oboé amargo

Duas e pouco da madrugada. O uísque, no fundo do copo, é um espelho líquido onde a imaginação se reflete, cansada. O tédio, uma serpente flutuando no ar, um zumbido surdo de moscas invisíveis. A meia-luz colorida da boate, esverdeada aqui, avermelhada ali, amarelada mais além, vai umedecendo as mesas, difusamente.

Há um sussurro de vozes indistintas e risos abafados. De quando em quando, eleva-se uma voz mais forte, ilha sonora num arquipélago de sons confusos. Homens e mulheres, nas mesas espalhadas pelo salão. Sós. Sós apesar das palavras soltas que os ligam, pontes efêmeras. Uns, em busca de uma fuga ainda possível à tragédia do cotidiano, ao drama dos dias que se arrastam, monótonos e vazios. As outras, atrás do dinheiro que quase sempre alimenta os filhos e às vezes sustenta o luxo e a ociosidade. Uns procurando, na fugaz alienação do álcool e da presença feminina, o remédio temporário para a realidade de estarem vivos, mas vivendo uma vida que, irremediavelmente, é véspera de morte. As outras, mercenárias, usando, com as máscaras afiveladas ao rosto, a arte de fingir, a sutil arte de fingir. De fingir até mesmo quando sentem aquilo que fingem sentir.

O pequeno conjunto musical espalha pela atmosfera saturada de fumo as notas melancólicas de um samba-canção. Um cantor negro, de voz suave, começa a cantar algo que muitos não entendem, algo que muitos gostariam de não ouvir neste momento de evasão, esquecidos da verdade daquelas palavras duras, ditas com tanta doçura, com tanta mansidão…

?Tristeza não tem fim,

 felicidade sim…?

E a voz do cantor de ébano vai se dissolvendo no ar, vai se espreguiçando, penumbra e luz, quebranto e afago, vai se derretendo, liquefeita, dentro dos copos de uísque, vai me envolvendo com um véu incolor, translúcido, construído de coisas invisíveis, de farrapos de sonho que o vento agita, que mais parecem fragmentos de gaze esbranquiçada, vai penetrando em mim, vai me dominando, vai me vencendo, carícia envolvente de dedos incorpóreos, lentamente, indistintamente, enevoadamente.

Alguém, uma voz sem rosto, impessoal, na mesa ao lado, pergunta-me se falta muito para começar o ?show?. Digo que não sei. Não me interessa. Uma voz áspera de mulher, na mesa em frente, diz que está quase na hora. Pela conversa ao lado, fico sabendo que no famoso ?show? se destaca Miriam, a ?strip teaser?. Agora, um apresentador de voz estridente vem ao microfone para anunciar o início do ?show?. Que se intitula ?uma noite no circo?. Deve ser uma droga. Enfim, vejamos. Rufam tambores, e as artistas, uma a uma, vão surgindo na arena improvisada, com passos marciais. Querem parecer provocantes e são apenas lamentáveis. Primeiro, vem a equilibrista, de cabelos ruivos e faces maceradas, apesar dos seus dezenove ou vinte anos. Depois a trapezista, a palhaça, a contorcionista, a domadora de serpentes, a ilusionista. Um festival de carnes flácidas. De carnes torpes, ?ex libris? do pecado. Rostos marcados, indelevelmente marcados pelas cicatrizes da vida. Ou do tempo. Ou da simbiose de ambos. Tudo isto me enoja. Não, não… Pensando bem, talvez não seja asco esta sensação nauseante que me invade com os seus tentáculos pegajosos, mas apenas tristeza, uma estranha espécie de tristeza, enlanguescedora e mole. Que dá vontade de chorar, de chorar baixinho, de chorar longamente, de chorar sem querer saber a razão por que se chora ou por que existe pranto no mundo.

Peço mais um uísque. (É o quarto ou quinto?) O ?show? continua. Agora, é a vez do número que se intitula ? ?A professora e o aluno?. Mas não é própria a designação. Ficaria melhor se fosse ? ?A professora e o pederasta?. Uma sucessão interminável de palavras sujas, de expressões abjetas, vestindo pretensas piadas de humor discutível. Não presto atenção. Não quero prestar atenção a tantas obscenidades, que a platéia aplaude com frenesi. O uísque é um bálsamo refrescante para a chaga do instante que passa. Procuro afundar-me mais e mais nas águas mansas da lagoa azul de não lembrar, de tudo esquecer, de mordiscar o nada, de perambular, por instantes, pelo reino esquecido e noturno do olvido. Palmas frenéticas trazem-me de novo à realidade. Mas o que é a realidade? Quais os seus contornos, o seu perfil, a sua essência?

A aula de alfabetização de adultos terminou. Aqui e ali, um bocejo irreprimível nas bocas. O ar, espesso de fumo, está quase irrespirável. Alguém tosse fortemente. O locutor anuncia agora o número da ?strip teaser?. Por curiosidade, por curiosidade apenas, presto atenção. As luzes apagam-se. Agora, a escuridão é completa. Envolta num vestido prateado que lhe cobre o corpo bem torneado e deixa adivinhar as suas curvas, itinerário de volúpia, Miriam surge no palco, indistinta dentro das trevas quase absolutas. Um refletor acende-se. Agora, Miriam é inteiramente visível. Apesar da distância a que se encontra, tem um rosto cujos traços surpreendem pela beleza incomum. Um rosto angelical. Um rosto que tem qualquer coisa que me lembra alguém… Penélope? Não é possível! É o rosto exato de Penélope. Devo estar vendo mal. Ou sonhando, talvez. Instintivamente agitado, levanto-me. Peço a uma dona, de face depravada, sentada à minha frente, que troque de lugar comigo. Acede, de mau modo. Não ligo. Estou concentrado nas faces puras de Penélope. Mas não, não é Penélope. Penélope, viva dentro de mim por breves momentos, está morta. Mortos os seus olhos que me fitaram outrora, tantas vezes, com ternura infinita e em cujo azul puríssimo tantas vezes mergulhei os meus. Mortas, desfeitas, apodrecidas as mãos que enlaçaram as minhas outrora, mansamente. Mortos os cabelos louros, cascata de luz onde os meus dedos se iluminavam. Mortos os lábios de pêssego e romã que me alucinavam. Morta a voz de veludo que era música das esferas nos meus ouvidos. Morta, Penélope. Morta para sempre. Morta, morta, na província misteriosa de antigamente.

Levanto-me. Não posso mais olhar a ?strip teaser?que, lentamente, uma a uma, se vai despojando de todas as peças do vestuário.

 Estremeço, febril. Sinto que a memória, a intocável memória de Penélope está sendo profanada, conspurcada, vilipendiada. O álcool turva-me a vista. E não consigo evitar um grito. Um grito rouco. Um grito rubro como ferro em brasa. Um grito que é feito da saudade de Penélope, da saudade dos seios, do corpo de Penélope.

 ? Basta, prostituta!

Há um rebuliço dos diabos dentro da boate. Dois leões de chácara, enormes como postes, põem-me para fora com violência. Levo algumas bofetadas no rosto. Um murro mais forte nos dentes. Passo a mão na boca. Estou sangrando. Mas nada sinto, alheado do mundo que me rodeia. Por alguns instantes, Penélope, morta há quase vinte anos (sim, vinte anos, uma eternidade que me fez os cabelos quase inteiramente brancos), viveu dentro de mim, luminosa e frágil, enchendo-me a alma com a sua presença etérea de anjo que se foi e que eu amei como jamais voltei a amar, durante todos estes anos.

Olho o relógio. Quatro da madrugada. Não sei por quê, mas tenho lágrimas nos olhos. Lágrimas doces e amargas. Docemente amargas ? ou amargamente doces. Elevo o olhar ao céu estrelado. Um carro passa, veloz, no asfalto da avenida. A noite é uma orquídea negra que já vai murchando. A flor da manhã desabrocha, lentamente. 

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