Escravidão e ideologia neoliberal

Explicar o paradoxo da revolução tecnológica e da alteração dos modos de produção, onde a força-de-trabalho perde cada vez mais espaço para os incrementos da microeletrônica, com a rudimentar utilização dos serviços físicos escravos, é tarefa questionadora da existência ou não de uma civilização, para não dizer que o estado é de barbárie.

Depois de 115 anos da libertação oficial de escravos, estamos presenciando uma nova forma de escravidão, não mais racial, mas de cunho social. Diferente, é verdade, mas também dolorosa e que envergonha qualquer ser humano imbuído de minúsculo espírito humanitário.

Além de uma cultura que ainda guarda fortes traços escravocratas, o fato é que se intensificaram nos últimos anos denúncias sobre a presença de trabalhadores em condições análogas às de escravo.

O trabalhador escravizado atual não é chicoteado fisicamente, mas às vezes apanha, morre e a família sequer tem o direito de sepultá-lo. Ele é aliciado para trabalhar em localidade diferente da propriedade que faz uso dos serviços forçados, sem carteira assinada, residindo em alojamentos cujas condições são extremamente precárias, além de instalações sanitárias inadequadas, sem água potável e sem nenhum equipamento de proteção para desempenhar as suas funções.

Não há qualquer direito trabalhista, nem mesmo salário, pois já chega na fazenda devendo pelo deslocamento de sua residência à “senzala” moderna. A sua dívida é como a do Brasil com os credores internacionais, ou seja, pelas regras atuais, não pode ser paga nunca. O truck-sistem é a agiotagem praticada contra o trabalhador. Quando ele quer sair, do mesmo modo que se faz chantagem com o Brasil, dizem que ele não pode dar passo tão longo, a não ser que queira correr o risco de ser quebrado pelo tiro de misericórdia do mercado cruel do salve-se quem puder.

É preciso expropriar a propriedade que utiliza trabalhos forçados em favor dos escravizados, sem qualquer tipo de indenização, como estabelece a PEC 438/2001, em tramitação na Câmara dos Deputados. Um pouco mais de vontade política, na feliz expressão do presidente Lula, irá contribuir para a eliminação do trabalho escravo.

É imprescindível que a violência de reduzir alguém à condição análoga à de escravo receba tipificação mais precisa, elevada ao nível de crime hediondo e com penas mais longas, para que não ocorra a impunidade, cuja marca maior é a existência de apenas um condenado definitivamente no Brasil, sem a restrição da liberdade, eis que esta foi substituída pelo fornecimento de cestas básicas durante seis meses.

A Comissão Pastoral da Terra revela que existem no Brasil cerca de 25 mil trabalhadores submetidos à condição análoga à de escravo. Se fosse apenas um, caberia da mesma maneira adotar medidas enérgicas para acabar com o trabalho forçado e punir os responsáveis pelo crime.

As decisões judiciais reiteradamente proferidas pela Justiça do Trabalho têm se revelado de extrema importância, com a fixação do dano moral coletivo e de indisponibilidade dos bens dos fazendeiros.

Não é por outra razão que a Anamatra reivindica a competência para o juiz do trabalho conhecer e julgar os crimes contra a organização do trabalho, como também para apreciar, na órbita penal, a infração de reduzir alguém à condição análoga à de escravo. E assim o faz porque o magistrado trabalhista possui maior afinidade com a matéria, conhece em primeiro plano da relação entre o capital e o trabalho, além de estar apto para enfrentar a celeuma sob todos os pontos de vista, a exemplo do que fazem os juízes do trabalho da Espanha e de Portugal.

Enquanto juízes estaduais e federais declinam da competência criminal em questão, provocando vários conflitos negativos, encontra-se a Justiça do Trabalho pronta, interiorizada e capilarizada, para receber as novas demandas, cuja prestação jurisdicional será, sem nenhuma dúvida, mais ágil e eficaz.

Se por um lado, o atual governo ainda não adotou todas as medidas necessárias para eliminar o trabalho escravo, devo ressaltar, no entanto, que a negociação em torno da aprovação do projeto que cria 269 varas do trabalho, representa um duro golpe nos fazendeiros escravocratas, considerando que mais de 50 varas serão instaladas nas regiões onde há maior incidência de serviços forçados.

Todos os atos são importantes, insuficientes, no entanto, para eliminar as formas degradantes de exploração do trabalho humano, a não ser que prospere a capacidade crítica de romper com a ideologia neoliberal que domina o mundo, responsável pela propagação do engodo de que “qualquer trabalho é melhor do que nada”. Temos que demonstrar os reais interesses envolvidos no processo, desde a perseguida redução de custos até a desvalorização da força-de-trabalho.

Grijalbo Fernandes Coutinho

é juiz do trabalho e presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra)

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