Luiz Flávio Gomes

Assassinato de Sakineh no Irã: sangria aberrante

Quando você (caro leitor) estiver lendo esse artigo é bem provável que a iraniana Sakineh Ashtiani já não seja mais uma das inquilinas deste planeta chamado Terra. Sua vida já terá sido (brutal, atroz e teocraticamente) ceifada. O ser humano, ao longo da sua história (de cerca de 7 milhões de anos), experimentou progressos civilizatórios extraordinários, mas ainda tem muito que evoluir. Por adultério Sakineh foi condenada (no Irã) à pena de morte, por apedrejamento. Que coisa mais pré-histórica! Indagada por que foi condenada à morte ela disse: – “A resposta é bem simples: É por eu ser uma mulher, é por eles acharem que podem fazer o que quiserem com as mulheres, nesse país”.

Quanto atraso e quanta crueldade! Quanta dor distribuída intencional, irracional e desnecessariamente. A que ponto chega o fundamentalismo religioso, para quem “os indivíduos devem pertencer a um grupo religioso e sua vida cotidiana deve reger-se pelas tradições normativas desse grupo, que se julga possuidor da verdade divina, do “caminho acertado’, da validez absoluta dos seus dogmas e dos seus princípios” (Ramim Jahanbegloo, filósofo iraniano).

Você já parou para pensar sobre o que é morrer por apedrejamento? Pare um minuto! É uma das mortes mais horríveis de toda a história das penas crueis e desumanas. Uma a uma as pedras vão atingindo a parte superior do corpo da vítima (no caso das mulheres, dos seios para cima). O corpo vai sendo dilacerado aos poucos, até perecer. São incontáveis os traumatismos cranianos. Não menos intensa é a hemorragia. Não se trata de uma morte rápida (como numa cadeira elétrica). Não existe piedade, ao contrário, só crueldade. E o pior é saber que se trata de um castigo deliberado, imposto por um Estado machista, anacrônico e obscurantista.

Nos países um pouco mais civilizados já não se descreve, nos textos legais, a dor ou o sofrimento gerado pelo castigo (Nils Christie). Esse não é o caso do Código Penal iraniano que narra a lapidação nos seus arts. 98 a 107, com todos os detalhes de uma barbárie bestial. Quem atira a primeira pedra? O juiz do caso, quando não há testemunha do fato; havendo, esta joga a primeira pedra, depois o juiz, depois os presentes. Presentes? Existem: o ser humano é o único animal que gera sofrimento a outro (ser humano) por puro prazer, por satisfação.

Até o tamanho da pedra é descrito na lei (artigo 104 do citado Código Penal): “As pedras não podem ser grandes o suficiente para matar a vítima no primeiro ou segundo golpe, porém tampouco pequenas que não possam ser chamadas de pedras”. Você precisa ter muito estômago para suportar e presenciar os últimos momentos agonizantes da vítima. Cuida-se de uma dor evidentemente inútil e desnecessária.

A barbárie humana é a mais torturante de todas porque é recorrente e está espalhada por todo planeta. E lamentavelmente ela não existe apenas no Irã. Não podemos nos esquecer que dez mulheres são assassinadas por dia no Brasil. Por dia! A cada duas horas (e pouco) uma delas perece, por ato do seu marido, parceiro, companheiro etc. De 1997 a 2010 cerca de 50 mil mulheres foram mortas brutalmente no nosso país, em razão de uma causa (o machismo) que tem raízes no âmago mais profundo da nossa cultura valentona e possessiva. Desgraçadamente, não é só no Irã que os “machistas” acham que podem fazer o que quiserem com as “suas” mulheres!

A impunidade generalizada dessa matança coletiva impiedosa constitui um dos fatores do seu permanente incremento. Pimenta Neves assassinou Sandra Gomide há (precisamente) 10 anos. Já foi condenado e ainda não iniciou o cumprimento da sua pena em razão da falta do trânsito em julgado. O processo está no STJ há uns cinco anos. Recurso atrás de recurso (técnica habilmente explorada pelos seus advogados).

Nem a morte (praticamente certa) de Sakineh (que só escapará por milagre), nem os 50 mil assassinatos (de mulheres) ocorridos no Brasil de 1997 a 2010 sensibilizam nossos governantes, juízes e tribunais (há exceções honrosas) a enfrentar essa “fábrica” de violência com a m&aac,ute;xima seriedade que requer, estabelecendo um programa político-criminal preventivo-educativo abrangente e eficaz.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, diretor-presidente da Rede de Ensino LFG e co-coordenador dos cursos de pós-graduação transmitidos por ela. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). www.twitter.com/ProfessorLFG. www.blogdolfg.com.br

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