Aborto anencefálico e imputação objetiva: exclusão da tipicidade (I)

Em 27.04.2005 o STF admitiu a pertinência jurídica da ação de descumprimento de preceito fundamental para se discutir a questão do aborto anencefálico. Resta agora julgar o mérito da ação proposta. Seis dos onze ministros já deram evidências, em julgamentos ou entrevistas, de que votarão a favor do direito da mulher de optar por interromper da gravidez se for detectada a anencefalia.

Por ocasião da concessão da liminar (julho de 2004) o ministro Marco Aurélio de Mello, relator da ação, autorizou a antecipação do parto nesses casos em todo o país. Ele disse que não se trata de aborto porque não há chance de sobrevivência do feto fora do útero.

Naquele momento e também no dia do julgamento da admissibilidade da ADPF, quatro ministros concordaram com Marco Aurélio: Carlos Ayres Britto, Celso de Mello, Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa. Em entrevista, o presidente do STF, Nelson Jobim, foi além, dizendo que é a favor da legalização do aborto, em qualquer caso. Com isso, ao que tudo indica, seis votos já são certos. É o quanto basta para a procedência da ação.

O min. Marco Aurélio disse que o julgamento do mérito deve ocorrer neste ano. Neste semestre ele irá promover audiências públicas com os interessados na causa, inclusive representantes da comunidade científica. O min. Joaquim Barbosa lembrou o caso de uma mulher do Rio de Janeiro que passou toda a gravidez submetida a um vaivém de decisões judiciais. Ao final, o parto ocorreu antes do julgamento de um habeas corpus no STF, e o bebê viveu sete minutos. Sublinhou o ministro: ?Ela foi submetida a todo tipo de chicana e arbitrariedade, inclusive por representantes do poder público?. Ele criticou, ademais, o Código Penal, de 1940, que admite duas hipóteses de aborto: se a gravidez decorrer de estupro e se houver risco de vida à mãe. ?Estamos diante de uma legislação vetusta, concebida em priscas eras?.

Os quatro votos pelo arquivamento da ação foram de Eros Grau, Cezar Peluso, Ellen Gracie Northfleet e Carlos Velloso. Eles disseram que o STF substituirá o Congresso na tarefa de legislar porque estará criando uma hipótese de aborto não prevista no Código Penal. Com a devida venia, não é disso que se trata.

Exclusão da punibilidade ou da tipicidade?

Nosso Código Penal, no art. 128, prevê duas hipóteses de aborto permitido: o necessário, quando há risco de vida para a gestante (CP, art. 128, I), e o humanitário ou sentimental (quando a gravidez resulta de estupro CP, art. 128, II). Não se pretende que o STF crie uma terceira modalidade de exclusão de punibilidade em relação ao aborto. Não é isso que se pede. Sim, que ele declare que o aborto anencefálico não se enquadra nos tipos penais desse crime (contemplados nos artigos 124 e ss. do CP).

Mas sob qual fundamento isso seria possível? A resposta só pode ser encontrada na teoria da imputação objetiva que, depois da II Guerra Mundial, foi reintroduzida no âmbito penal pelo funcionalismo (tanto moderado Roxin quanto radical Jakobs). Quem cria risco permitido não responde pelo fato praticado. O risco permitido exclui a imputação objetiva. Logo, a tipicidade.

O aborto anencefálico não é um fato materialmente típico. Mas isso só pode ser compreendido quando se tem presente a distinção clara que hoje deve ser feita entre tipo penal, tipo formal e tipo material.

O tipo penal, no tempo do causalismo de von Liszt e Beling (final do século XIX e começo do século XX), era puramente objetivo ou formal (era só causalidade). O fato típico exigia: (a) conduta; (b) resultado naturalístico (nos crimes materiais); (c) nexo de causalidade e (d) adequação típica (subsunção do fato à letra da lei). O tipo penal era puramente formal. O ?matar alguém? significava ?causar a morte de alguém?. O eixo do tipo penal residia na mera causação. Provocar o aborto significava ?causar o aborto?. Bastava o nexo de causalidade (entre a conduta e o resultado) para se concluir pela tipicidade da conduta. Nessa perspectiva puramente causalista e formalista, não há dúvida que o ?causar qualquer tipo de aborto? (anencefálico ou não) é um fato típico.

Com o finalismo de Welzel (cujo apogeu deu-se entre 1945 e a década de sessenta do século passado) o tipo penal passou a ser composto de duas dimensões: objetiva e subjetiva. Esta última era integrada pelo dolo ou culpa (que foram deslocados da culpabilidade para a tipicidade). Também para essa corrente o aborto anencefálico desejado (doloso) seria um fato típico. A conclusão bem diferente se chega quando se considera o conceito de tipo penal a partir do funcionalismo, sobretudo de Roxin.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente do IELF PRO OMNIS: 1.ª Rede de Ensino Telepresencial da América Latina. www.proomnis.com.br

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