Acidente na serra

Quando chegamos, apenas uma música baixinha saía do rádio, por entre as ferragens do que parecia um dia ter sido um Astra.

Que lei seca que nada. Mais um motorista que resolveu pegar a estrada combinando velocidade com cerveja. Para tornar a viagem inesquecível, levou a família junto. Mãe, esposa, filho. Todos encarcerados nas ferragens.

Ao tentar uma ultrapassagem simples no pé da serra, deu de frente com uma carreta carregada com artefatos de concreto. Sim, mais um veloz e furioso que entrou para a lista dos imbecis de plantão.

Desço da ambulância sentindo um forte cheiro de gasolina. Os socorristas disparam na minha frente. Quando percebo, já estão enfiados no meio do ferro retorcido. Ao me aproximar, percebo a gravidade do acidente. Ficou feio na foto! Rapidamente constatamos que o único vivo ainda era o condutor.

Enquanto os bombeiros se valem do alicate hidráulico para soltar o condutor, me arrasto com dificuldade para tentar alcançá-lo. Poxa, preciso perder essa barriga. O prognóstico é ruim, Glasgow rebaixado. Decreto código três. Sério, é preciso correr.

É quando você percebe algo de sobre-humano nesses bombeiros. Os caras abrem as ferragens do carro no braço. Como o helicóptero está fora de rota, a velha ambulância sai no gás. Sirene, giroflex, estrobo, adrenalina, tudo ligado.

No caminho, aquecemos o paciente e realizamos um exame físico mais detalhado. Para piorar, uma chuva despenca na estrada.

O fedor de cerveja impregna a viatura. Pelo assoalho, sangue e cacos de vidro. Penso nos corpos que ficaram para trás. Uma sensação de cansaço e impotência me acerta. Sento no convés da ambulância e olho para o paciente, inconsciente na maca. Os sinais vitais me dão uma pista de que talvez ele consiga sobreviver.

Tomara.

Mas penso quietinho comigo no que faz a vida valer a pena. Quais as emoções e os riscos que dão sabor pra vida? E quais os erros passíveis e possíveis de se cometer sem sermos punidos?

Difícil saber.

No caso do nossopaciente, as respostas talvez tenham ficado lá atrás, no asfalto do pé da serra.