Tempo de politizar

Os escravos viviam melhor que os brasileiros de hoje, constrangidos (ou condenados) a viver com um salário mínimo de R$ 240? Pode ser, e pode não ser. Para o ministro Ciro Gomes, da Integração Nacional, aqueles que hoje dependem do salário mínimo vivem em pior situação que os escravos de ontem, dependentes em tudo do senhor. Mas, e quem nem isso ganha? Que tipo de brasileiro é esse diante de um outro, remunerado pelo erário público com cem, duzentas vezes mais, sem contar outras regalias? Como poderemos ser um País grande e desenvolvido ostentando essa chaga social contada aos milhões? Só há um caminho para o Brasil chegar ao capitalismo moderno – apregoa o ministro – e este caminho é o da desconcentração de rendas. Palmas.

O candidato derrotado à Presidência da República de olho na próxima vice-presidência falou recentemente a magistrados no auditório do Conselho da Justiça Federal, em Brasília. O tema (“Judiciário e Distribuição de Renda”) era instigante, pelo menos para a seleta platéia a que se dirigia. Cobrou fundo: os magistrados precisam abandonar a sua “majestade” para entrar em “maior sintonia” com a população. Como? “O tempo agora – disse – é de politizar complexamente o problema da concentração de renda no Brasil.” “Politizar complexamente” é tarefa mais difícil que simplesmente politizar. Não é?

A reflexão aconselhada por Ciro Gomes por certo não passará em branco. Há muito tempo integrantes do Judiciário se preocupam com essas questões. Embora ainda reaja corporativamente na hora de defender privilégios às vezes confundidos com prerrogativas, a magistratura esclarecida há muito permeia seu discurso com a preocupação social de bom calibre. Exemplo disso tivemos no curso das discussões acerca da reforma da Previdência. Num País onde ponderáveis parcelas da população (os programas sociais do governo trabalham com um universo de 55 milhões de brasileiros desvalidos) não têm salários, nem empregos, pensar em aposentadoria é um luxo. Muito mais em aposentadoria integral. De qualquer forma – há que se admitir -, o erro não estaria nestes, mas, sim, naqueles.

Mas o apelo do ministro da Integração à politização da questão social – como se esse já não fosse um fato – não deve se restringir aos magistrados. Isso também é uma verdade. Existem no Executivo e no Legislativo os marajás do dinheiro público, já um dia referidos pelo candidato Fernando Collor em campanha que lhe valeu a vitória sobre o atual presidente Lula. A politização do problema da concentração de renda no Brasil deve se estender, assim também “complexamente”, a todos os poderes e seus andares, cujos agentes nem sempre em lá chegando estão dispostos a abrir mão de pequenas vantagens que, somadas todas, acabam fazendo essa brutal diferença que nos envergonha. Isso é indispensável para que o tema chegue, depois, aos demais cidadãos que militam na iniciativa privada e que, invariavelmente, são convocados a pagar a conta dos primeiros.

Desde a tomada de consciência até a ação necessária para a eliminação do mal, nessa “politização” referida por Ciro podem entrar muitos ingredientes. Mas seguramente o mais consistente e duradouro de todos não é a distribuição de dinheiro a famintos e necessitados. A geração de empregos e oportunidades dentro de uma economia em crescimento é o melhor presente que o governo possa oferecer a qualquer cidadão. Supera o constrangimento de qualquer esmola e constrói a dignidade das pessoas. Mais que dizer o que tem que ser feito em termos ideológicos, portanto, ficaria melhor para o ministro se ele pudesse explicar aos brasileiros e brasileiras como é que o governo a que serve vai fazer para cumprir uma de suas metas – talvez a mais importante de todas -, a geração de dez milhões de novos empregos em quatro anos. E que não sejam remunerados à base do mínimo, pior que o trabalho escravo. Feito isso, teremos tempo, também nós, e de sobra, para “politizar complexamente” qualquer outra coisa.

Voltar ao topo