STF autoriza extradição de militar uruguaio da ditadura

Notícia do STF: “O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou o governo brasileiro a extraditar o major uruguaio Manuel Juan Cordeiro Piacentini para a Argentina. O militar é acusado de ter participado da Operação Condor, formada nos anos 70, para reprimir a oposição a regimes militares da América do Sul”.

“A decisão foi tomada no julgamento do pedido de Extradição (Ext) 974. Piacentini responderá, na Argentina, pelo sequestro do cidadão argentino Adalberto Valdemar Soba Fernandes, ocorrido em 1976. Adalberto era menor de dez anos de idade na época em que desapareceu. O país de origem do major, o Uruguai, também havia pedido a entrega de Piacentini (Ext 1079), mas o pedido foi julgado prejudicado, uma vez que o artigo 79 da Lei 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro) determina que, quando dois países pedem a extradição de uma mesma pessoa pelos mesmos fatos, a preferência é daquele em cujo território a infração foi cometida”.

O julgamento ocorrido em 6/8/09 foi rápido, já que havia cinco votos favoráveis à extradição já proferidos em sessões anteriores. Eles eram os dos ministros Ricardo Lewandowski, Cezar Peluso, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa e Carlos Ayres Britto. Ao proferir seu voto-vista favorável à entrega do militar uruguaio, o ministro Eros Grau completou o quórum mínimo de votação para que a extradição fosse autorizada”.

Eros Grau disse que, como observou o ministro Cezar Peluso em seu voto, “não há suporte para a ideia de configuração de homicídios. Houve, ademais, aditamento atinente ao crime de sequestro de menor de 10 anos de idade e não subsistem os argumentos da defesa de prescrição”.

“Os advogados de Piacentini tentavam provar que alguns dos crimes pelos quais é acusado formação de quadrilha e homicídio haviam prescrito segundo a legislação brasileira, e que, portanto, a extradição deveria ser indeferida. Para Lewandowski, contudo, o sequestro tem caráter permanente até que a vítima seja entregue. Nessa ótica, o crime não prescreveu, pois a contagem para prescrição só começaria após o aparecimento da vítima, o que nunca ocorreu”.

Ficaram vencidos os votos do ministro relator, Marco Aurélio, e Menezes Direito ambos favoráveis à permanência do major no Brasil. Pedido argentino: o pedido formulado pela Argentina para requerer a entrega de Piacentini é fundamentado nas acusações de privação de liberdade agravada por violência e ameaças, de sujeição dos detidos a tormentos e de associação ilícita todos crimes previstos no ordenamento jurídico daquele país.

Os advogados do major, por outro lado, dizem que não há nos processos especificações dessas condutas atribuídas a ele. Eles também alegam que as supostas mortes e desaparecimentos ocorridos em 1976 eram de caráter político e que foi decretado o indulto ainda em 1989.

Além disso, eles alegam que não há um compromisso formal da Argentina em não aplicar pena de morte ou de prisão perpétua uma exigência brasileira e, por último, sustentam que o major já foi absolvido, em 1993, pelos mesmos fatos pelos quais responderá ao chegar à Argentina.

O STF autorizou a extradição e o destino do uruguaio, agora, está nas mãos do Presidente da República (a quem compete o ato da extradição). Normalmente o Presidente acompanha a decisão do STF.

Fundamentos da defesa: resumidamente a defesa do major uruguaio sustentou o seguinte: (a) caráter político dos crimes; (b) prescrição dos delitos; (c) lei de anistia; (d) absolvição precedente.

Primeira distinção fundamental: não se pode confundir crime político com crime contra a humanidade. São duas coisas distintas. Os crimes cometidos durante as ditaduras militares (décadas de 60, 70 e 80, do século XX), no nosso entorno cultural, são indiscutivelmente crimes contra a humanidade, que exigem: (a) atos desumanos (assassinatos, extermínios, desaparecimentos etc.), (b) generalizados ou sistemáticos,, praticados (c) contra a população civil, (d) durante conflito armado, (e) correspondente a uma política de Estado levada a cabo por agentes públicos ou pessoas privadas que promovem essa política, (f) com conhecimento desses fatos.

Diferenças entre o crime político e o crime contra a humanidade: neste ataca-se a população civil (generalizadamente); naquele, por motivação política, ataca-se agentes do regime (do Estado); neste o autor ou autores dos delitos atuam em nome de uma política de Estado; naquele o autor ou autores não se vinculam a nenhuma política de Estado (atuam em nome de uma ideologia, de um grupo separatista etc.); neste os agentes atuam contra os opositores do regime (do Estado); naquele os agentes atuam contra os defensores do regime (do Estado).

Os crimes cometidos pelos agentes públicos (ou agentes privados) em defesa do regime militar (do Estado), durante a ditadura, contra os opositores do regime, são indiscutivelmente crimes contra a humanidade.

Os crimes cometidos por qualquer pessoa da população civil ou militar contra os defensores do regime militar são crimes políticos (porque não foram cometidos em nome do Estado ou de uma política de Estado).

Não são crimes políticos os graves atentados à moral e ao senso comum dos povos civilizados. A proibição de extradição de estrangeiros no caso dos crimes políticos possui uma finalidade altruísta de respeitar as pessoas que se opõem a governos autoritários ou totalitários.

Esses benefícios típicos dos crimes políticos não podem ser estendidos aos crimes contra a humanidade (que emanam de políticas governamentais e são praticados por agentes públicos ou privados, que promovem tal política).

Imprescritibilidade: a autorização da extradição do militar uruguaio foi acertada porque ele praticou, na Operação Condor, no cone-sul, crimes contra a humanidade, que são imprescritíveis, consoante instrumentos da ONU, elaborados desde 1946 e 1950.

À luz do ius cogens os crimes contra a humanidade e genocídio são imprescritíveis. O transcurso do tempo, nesses casos, não afasta a punibilidade dos delitos (que afetam de modo profundo a consciência universal).

De outro lado, vários desses crimes possuem natureza permanente (sequestro, por exemplo, ou desaparecimento de pessoa). E não se inicia a prescrição nos crimes permanentes enquanto não durar a permanência.

Leis de anista: de outro lado, as leis de anistia não valem em favor desses agentes, conforme consolidada jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e documentos internacionais. Nesse sentido: (a) Estatuto do Tribunal Especial para Serra Leoa (art. 10); (b) Comitê de Direitos Humanos da ONU (relatório de 2007); (c) Corte Interamericana de Direitos Humanos (Caso Barrios Altos. Caso Almonacid Arellano, Caso Goiburú etc.).

Sentenças absolutórias: nem tampouco as sentenças absolutórias valem (a garantia da coisa julgada é inexistente, em razão da parcialidade dos julgamentos).

Os crimes contra a humanidade (cometidos no nazismo e nas ditaduras militares) assim como os crimes de genocídio não podem ser tratados como crimes comuns (ou políticos). São crimes que ostentam um excepcional grau de crueldade e de tortura moral e física. Ferem a humanidade (logo, são puníveis em qualquer tempo).

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). www.blogdolfg.com.br

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