O juiz e o pedido de falência formulado em face do devedor

Presta-se o presente a escrever algumas linhas acerca das medidas de cunho processual que poderão ser adotadas pelo juiz ao analisar a petição inicial do pedido de falência formulado em face do devedor [Lei 11.101/05]. Inicialmente, e tal asserto vem há muito sendo repisado, a referida lei que regula a falência e a recuperação de empresa e empresário é carente de [boa e imprescindível] técnica redacional. Aliás, emprestando os dizeres de Orlando Gomes, ao escrever a respeito especificamente do Código Civil de 1916, assevera que em várias disposições, é mais uma expressão de idéias do que de realidades(1). O mesmo é dito, com tranqüilidade, em relação aos termos da Lei 11.101/05. Com efeito, um parêntesis cabe aqui desde logo ser feito. Não se nega a importância do direito comparado para fins de aperfeiçoamento do sistema jurídico nacional. Aliás, o legislador sempre utilizou, ele próprio, o direito comparado para realizar e aperfeiçoar a sua obra, conforme bem assevera René David(2). Aliás, o mesmo autor prossegue, afirmando que o recurso pelo legislador à ajuda do direito comparado não pode deixar de se tornar, na sua época, cada vez mais freqüente, uma vez que se tende a deixar d o considerar como um mero instrumento de estabilização, passando-se a vê-lo como fator de transformações mais ou menos radicais da sociedade pela ação de novas ações(3). De fato, a inspiração das idéias(4) deve ser direcionada à concreção de leis úteis à tentativa de resolução, ou pelo menos mitigação dos conflitos inter ou plurissubjetivos. Mas quando se coloca em mesa os termos da Lei 11.101/05, especialmente os dispositivos acerca da recuperação judicial, emerge um grave e indisfarçável equívoco: a importação direta da lei norte-americana, que se destina à tentativa de saneamento e soerguimento da empresa em crise, deixou de lado, por exemplo, a figura jurídica denominada de automatic stay. Por que não se importou, também principalmente, a automatic stay?

De fato, caso o exegeta leia atentamente os termos do artigo 49 da lei falimentar brasileira, perceberá que esta é bastante parcial e injusta em relação ao universo de credores do recuperando, na medida em que deixa fora do ambiente da recuperação aqueles que detém garantia real, por exemplo. Mais do que tudo isso, e uma vez mais reafirmando que o direito comparado é deveras importante para o aperfeiçoamento do sistema legal pátrio, olvidou o legislador, por exemplo, que não bastava a simples importação do Chapter Eleven. Era mais do que necessário adequar os institutos à peculiaridade local. Não obstante tais assertos, nota-se que no país superpotência várias [e importantes] empresas multinacionais e transnacionais estão mergulhadas em crise, que não é momentânea. Coloque-se aqui, desde logo, o caso das montadoras. As crises empresariais estadunidenses vêm demonstrando à saciedade que a lei de reorganização empresarial daquele país [que segue a common law] é pífia, e não vem surtindo os efeitos há muito almejados.

O que dizer da lei brasileira?

Mas, não desviando do fio condutor do presente escrito, impende notar que a referida lei falencial, em único dispositivo a respeito do pedido de falência [artigo 98] assevera que, citado, o devedor poderá apresentar contestação no prazo de 10 [dez] dias. Só isso. Nesse passo específico, a redação do artigo 11 do Dec.-Lei 7.661/45 é de infinita qualidade técnica, não olvidando que, de fato, o prazo exígüo de 24 horas para apresentação de defesa não tinha qualquer sentido, e não foram poucas as empresas que viram suas portas cerradas considerando que houve a decretação da falência justamente por inobservância de tal prazo legal.

Desde logo, citação para apresentar contestação, tal como expressamente consta do texto legal, é mais uma das impropriedades técnicas verificadas. O devedor é citado para apresentar, querendo, defesa, que poderá assumir a forma de contestação, e esse aspecto será analisado algures.

Naquilo que for compatível, e considerando as omissões processuais da Lei 11.101/05, aplicam-se as regras do Código de Processo Civil [conforme artigo 189 da referida lei]. Considerando o absoluto silêncio da lei esparsa a respeito dos atos processuais que poderão ser praticados pelo juiz após a distribuição(5) do pedido de falência ajuizado pelo legitimado em face do devedor, cabe aqui apontar quais são os rumos que poderão ser adotados a partir da análise da referida inicial. Destaque-se, desde logo, que se observa o processo de conhecimento, o procedimento comum ordinário [artigo 282 do Código de Processo Civil], sendo inadequado tecnicamente falar em procedimento sumário. O Juiz poderá [i] desde logo indeferir a petição inicial [artigo 295 do Código de Processo Civil]. Por outro lado, afastada esta hipótese extremada, e em estando correta a petição, bem instruída e em conformidade com os requisitos elencados pelo artigo 94 da lei, o juiz poderá [ii] proferir o despacho liminar de conteúdo positivo(6), determinando a citação do devedor a fim de, querendo, apresentar defesa [resposta] no prazo de 10 [dez] dias. Com efeito, cabe citação, inicialmente, por mandado, considerando até e principalmente as [graves] repercussões jurídicas que poderão advir ao devedor com a [eventual] inércia e a conseqüente decretação da falência; as repercussões em relação aos credores, clientes, à comunidade na qual se insere a empresa ou empresário etc., e não menos certo que a decretação da falência é ato último, considerando o espírito da Lei 11.101/05. Não cabe, por outro lado, a citação via correio, mas cabe citação com hora certa e a citação via edital. No silêncio da lei falencial especialmente quanto a esta última possibilidade, caberá ao juiz fixar o prazo para que se considere realizada a citação editalícia, observado o regramento do Código de Processo Civil.

O juíz também poderá [iii] determinar a emenda à inicial [artigo 284 do Código de Processo Civil], em seguida acolhendo a inicial, determinando a citação do réu, ou, não estando em conformidade, indeferi-la.

Uma questão importante: em ocorrendo citação editalícia, e em se tratando de pedido de falência escorado no artigo 94, inciso I, da Lei 11.101/05, caberá a nomeação de curador especial, nos termos do artigo 9o do Código de Processo Civil? Parece, salvo melhor juízo, que a medida é de todo incabível(7). Entrementes, caso a hipótese seja a do artigo 94, incisos II e III, da lei, crê-se que, nos moldes do artigo 12 do ab-rogado texto legal, cabe a nomeação de curador à lide. No que diz com o agente do Ministério Público, e tendo em vista o veto presidencial aos termos do artigo 4o da Lei 11.101/05, entende-se que não cabe, em tal fase inicial do processo, abrir vista para que se pronuncie acerca dos termos da petição inicial. Isso justamente porque o agente ministerial somente é intimado a respeito de algum ato processual quando a lei assim expressamente determinar, a exemplo do artigo 99, inciso XIII. No caso, nada é dito quanto a intimação para [querendo] se pronunciar na fase ainda preliminar da falência. Destarte, é incorreto abrir vista dos autos ao Ministério Público sem que se tenha a falência decretada.

A questão que envolve os rumos, por assim dizer, do processo após a citação [regular] do devedor, será apreciada no momento próprio, em outro texto.

Notas:

(1)     GOMES, Orlando. Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil Brasileiro. São Paulo:Martins Fontes, 2003, p. 23.

(2)     Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. 4.ª edição. São Paulo:Martins Fontes, 2002, p. 7. Tradução: Hermínio A. Carvalho.

(3)     Op. cit., p. 7.

(4)     Idem, p. 8.

(5)     Que, consoante regra do artigo 6.º, § 7.º da Lei 11.101/05, previne a jurisdição para qualquer pedido de mesma natureza, relativo ao mesmo devedor. Ainda, ver artigo 219 do Código de Processo Civil a respeito da prevenção.

(6)     Tal como diz José Carlos Barbosa Moreira.

    Foi exatamente neste sentido que decidiu o Tribunal de Justiça, ao analisar pedido de falência arrimado no Decreto-Lei 7.661/45, consoante se infere da leitura do acórdão n.º 18.738, com voto condutor do Desembargador Pacheco Rocha, 1a Câmara Cível, Agravo de Instrumento n. 18.738.

Carlos Roberto Claro é professor [assistente II] de direito comercial do Centro Universitário

Curitiba [graduação]; mestrando em direito empresarial pela mesma instituição de ensino; especialista em direito empresarial e membro do American Bankruptcy Institute [Virginia] 

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