O insustentável caráter punitivo pedagógico das indenizações

“Comprovados documentalmente os danos materiais da ordem de R$ 3.000,00 sofridos pelo autor, entendo por bem decidir pela procedência do pleito, fixando para tanto o valor de R$ 4.000,00 de indenização, sendo 3.000,00 pelos danos materiais comprovados pelo autor, bem como R$ 1.000,00 em caráter punitivo pedagógico”.

Certamente causa estranheza ao leitor o texto da fictícia fundamentação de sentença acima. Isto porque, muito provavelmente, jamais viu similar fundamentação embasar uma prestação jurisdicional.

Passemos a analisar uma outra hipotética fundamentação:

“Ante os fatos dos autos, os danos morais se configuram in re ipsa, devendo ser fixados em valor pecuniário suficiente para reparar os danos, bem como se atentando para o seu caráter punitivo pedagógico. Dessa forma, entendo que o valor de R$ 5.000,00 preenche os requisitos inerentes ao escopo da verba.”

Este texto, por sua vez, certamente é familiar a todo e qualquer operador do direito que já se deparou com uma sentença procedente de ação de indenização por danos morais.

Nossa Constituição garante a toda e qualquer pessoa a reparação pelos danos patrimoniais ou extrapatrimoniais sofridos. Ainda, nossa legislação determina que a indenização devida se mede pela extensão dos danos causados.

Apesar de simples e claro, o texto legal atualmente vem sendo interpretado por doutrinadores, advogados e magistrados como norma que possibilita a fixação de indenização por danos morais em valor maior que a sua extensão, sendo tal acréscimo medida de caráter punitivo pedagógico, visando inibir a reiteração da conduta pelo agente causador do dano.

Inclusive, é larga a aceitação de tal entendimento pela doutrina pátria.

Indenizar alguém para além da extensão dos danos efetivamente suportados, visando educar o agente por meio de medida punitiva, é instituto difundido no common law inglês e norte-americano, denominado de exemplary damages e punitive damages respectivamente.

Tais medidas são cabíveis, inclusive, quase que unicamente em casos de tort law, ou seja, casos de responsabilidade não decorrente de vínculo contratual. Vale frisar que até mesmo em tais países os punitive damages são controversos, gerando no Direito norte-americano a idéia de uma reforma do tort law, impulsionada principalmente pela indústria dos danos morais criada pelos punitive damages.

Parece-nos que tal instituto não é cabível em nosso sistema.

Humberto Ávila , em palestra ministrada no dia 3 de outubro passado durante o Congresso Nacional de Estudos Constitucionais, realizado em São Paulo , bem alertou para a inserção “a marteladas” de institutos jurídicos de ordenamentos diversos no sistema pátrio. Ainda que tenha tratado o Professor de matéria diversa da aqui discutida, sem fazer menção ao caso em tela, a lição aqui perfeitamente cabe.

Sem que seja necessário mencionar teses que atribuem ao caráter punitivo das medidas uma feição criminal, incorrendo sua aplicação em pena sem prévia cominação ou usurpação de competência dos magistrados criminais pelos magistrados cíveis, é de fácil constatação a incompatibilidade de tal entendimento com as regras insculpidas na legislação civil vigente.

Nosso sistema não apenas determina que a indenização mede-se pela extensão do dano, mas também veda o enriquecimento sem causa e impede que qualquer pessoa seja compelida a cumprir algo senão em virtude de lei, sendo estes pontos categóricos para compreensão de tal incompatibilidade aplicativa.

Isto porque, o caráter punitivo pedagógico ou fator de desestímulo, se aplicado, contradiz todas as três normas acima mencionadas.

Com relação à primeira, nota-se uma contradição lógica. A aplicação do fator de desestímulo torna possível fixar uma indenização além da extensão do dano suportado, sendo que a norma do artigo 944 do Código Civil veda tal aplicação.

Caso tal norma tivesse sua validade afastada em razão de norma diversa, ou mesmo por cláusula da exceção, que possibilitasse a fixação de indenização para além da extensão do dano, tal medida representaria, na forma como aplicada, uma contradição do sistema.

Tal contradição se dá na medida em que receber uma indenização de valor superior ao dano suportado caracterizaria enriquecimento sem causa, também vedado no nosso ordenamento. Dessa forma, uma norma que possibilitasse indenização por valor superior à extensão do dano iria de encontro à outra norma do ordenamento. Todo sistema que apresenta contradições em si, deve apresentar regras para solução dessas contradições. Caso contrário, tal sistema estaria fadado à implosão.

Dessa forma, ainda que fosse possível a fixação de condenação em valor superior à extensão do dano, tal valor não poderia ser pago ao sujeito lesado, mas sim ao Poder Público, da mesma forma que ocorre com multas administrativas no direito civil, ou penas restritivas de direito e multas no âmbito criminal.

Note-se que partimos do pressuposto que a indenização por danos morais tem caráter de ressarcimento, e não de punição, tendo em vista a vedação ao enriquecimento sem causa e a ausência de qualquer lei que viabilize a situação acima, onde o valor aplicado a título de punição seja pago ao poder público.

Por fim, não nos parece possível a aplicação de qualquer sanção que não esteja prevista em lei, por mera conseqüência lógica do princípio da legalidade, pressuposto de um Estado de Direito. A própria legitimidade democrática do poder judiciário se dá – ainda que não exclusivamente – na medida em que o julgador se mantém adstrito à lei, ou seja, representação da vontade soberana do povo e limitadora da atividade do poder público.

Ainda, também não nos parece razoável aplicar sanção em razão de um possível ato ilícito que eventualmente possa ocorrer, ou seja, uma sanção aplicada com base em um fato futuro, que logicamente exista apenas em um plano hipotético.

Discute-se que o fator de desestímulo é cabível no sistema pátrio, eis que difere dos punitive damages, na medida em que este instituto tem mero caráter vingativo em face do ofensor, enquanto que o caráter punitivo pedagógico aplicado no Brasil tem função de coibir ou desestimular a reiteração da conduta.

Caso de fato fossem os punitive damages entendidos na doutrina estrangeira com mero caráter de vingança – o que não são, sendo considerados também como medida de desestímulo-, materialmente, de nada diferem os institutos, sendo que o sujeito tem seu patrimônio diminuído sem que o valor guarde relação com os danos causados. Assim, de nada difere ao sujeito que tem o seu patrimônio tolhido se a medida foi motivada por vingança ou para lhe desestimular. O efeito é o mesmo.

Ainda, o fator de desestímulo é justificado em razão de ser o dano moral de quase impossível quantificação, para alguns até irreparável, sendo a indenização mera tentativa de amenizar a dor sofrida, devendo tais danos ser severamente coibidos.

Entretanto, a dificuldade da quantificação da real magnitude do abalo moral sobre o indivíduo, ou mesmo a sua irreparabilidade por qualquer meio patrimonial, não permitem – pelo menos não em nosso sistema – a fixação de indenização em valor superior ao do dano.

Note-se que tais convicções não são impulsionadas por uma submissão irrefletida ao positivismo de Hans Kelsen, como alguns podem afirmar, eis que a ponderação e a racionalização das decisões nos parecem traços fundamentais para que o Direito atinja a sua finalidade de Justiça, e não seja uma mera prescrição formal que foge completamente à realidade social.

Contudo, como bem asseverou o Emérito Ministro Eros Grau, no seu voto na ADPF 144 – que versou resumidamente sobre a inelegibilidade de candidatos em razão de sua vida pregressa, ainda que não condenados por sentença transitada em julgado – vivemos sob uma ética da legalidade, e não sob uma ética da moralidade, onde os julgadores sentem-se livres para aplicar ou não a norma, de acordo com as suas convicções ou humor. Não podemos nos esquecer que vivemos em um Estado de Direito, sob um governo de leis, e não de homens.

Por fim, nos parece que o caráter punitivo pedagógico das indenizações por danos morais ainda tem sua aplicação largamente aceita em razão de ser relativamente nova a discussão acerca de tais danos extrapatrimoniais, tanto de sua natureza quanto da forma de quantificação, sendo doutrina ainda pendente de maior discussão para atingir maturidade.

Assim, é mais razoável que se discuta uma melhor teoria de quantificação dos danos morais, ou mesmo a elaboração de uma lei que venha aplicar sanções aos causadores de danos dessa natureza, e não que seja aplicado um fator de desestímulo sem qualquer embasamento positivo e contraditório com o sistema.

De toda sorte, fica o convite a todos os operadores do direito para que se aprofundem no tema, fazendo uma maior reflexão, a fim de se evitar posições insustentáveis.

“Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano”.

João Fernando Sgarbi é advogado, pós-graduando em Direito Constitucional pela Universidade Mackenzie.
João Ricardo Meira Amaral é advogado, pós-graduando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP

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