Volta ao palco da vida

Segundo domingo do ano, embora sem o impacto da surpresa, um presente: o primeiro neto. Fui conhecê-lo nove dias depois, dominado, acima de tudo, pelo irrefreável sentimento de curiosidade. Como seria ele? Já parecido com alguém? Não peguei no colo talvez por falta de confiança na experiência adormecida há duas décadas e vexatória se alinhada com a destreza onipresente da avó. Admirei apenas de longe.

Nasceu no mesmo dia que um dos bisavôs. Coincidência? Mais que possível, porém para quem crê em Deus e em destinos, sempre resta margem à especulação da dúvida, principalmente porque foi cesariana. Mas médicos também agem por inspiração divina e a maioria não sabe.

Corrijam-me os matemáticos, mas acho que a probabilidade disso acontecer é de 0,2739%, muito alta se comparada à chance entre 350 milhões ou das duas vezes no meio de 560.000 cupons, vinte dos quais da felizarda que ganhou um carro nas promoções do comércio do final de ano. O carro tinha que ser dela e ficou provado que a mão de Deus está mesmo em toda parte, inclusive nas loterias e no futebol, divertimento de uns, mas sustento de outros.

Olhando seu corpinho frágil eu escrevia sobre o neto, lembram-se? não pude evitar dar seqüência a algumas reflexões que vinha fazendo desde que soube do ?estado interessante? da filha. No fundo ele era apenas mais um entre os 5000 brasileirinhos que nascem todos os dias ou dos talvez 180.000 no mundo, entre eles Natália abandonada perto do cemitério em Nova Aurora, Rebeca no mato em Londrina, as várias Vitórias e as centenas ou milhares de outros que nascem condenados a morrer antes de completar um ano de vida, vítimas da fome e das doenças na África.

E apesar de dar pouca importância a expressões como ?sangue do meu sangue? e ?carregar o nome? ou o sobrenome e compreender as diferenças entre parentesco corporal e família espiritual, até que se prove em contrário este pequeno ser merece um lugarzinho especial no mundo. E espero seja mais que simplesmente um parente ligado geneticamente por força das leis da natureza e estejamos conectados pelo coração.

O recado que lhe enviei pela avó que o conheceu antes é menos espirituoso que espírita. ?Diga-lhe que seja bem-vindo no seu retorno ao mundo dos encarnados?. Sim, porque ele não nasceu, mas renasceu. Não sei quem ele é, como é, qual é o seu passado. Mas tenho certeza que não é uma tabula rasa como pensava Locke. Mais uma vez fico com O Homem de Nazaré: ?Não sabemos de onde vem e para onde vai, mas ele sopra onde quer e ouvimos sua voz?. Por enquanto, na verdade, só o choro de estranheza e inquietação diante dos novos desafios que terá pela frente, consciente que por mais tenha se preparado, o sucesso nem sempre está garantido. Todos somos falíveis.

E precisará de muito amor e apoio dos pais, de amigos visíveis e invisíveis a guiar seus primeiros e inspirar todos os passos. Não alcançará as metas traçadas lá na dimensão espiritual sozinho. Grande parte do que pretende fazer, ter e ser, será condicionado pelo que a sociedade puder lhe oferecer em termos de oportunidades materiais, progressos intelectuais e aperfeiçoamento moral. Os bons exemplos sempre falarão mais alto.

Certamente que reencarna cheio de esperanças de encontrar um mundo melhor do que deixou da última vez, seja lá quando isso tenha ocorrido. Ao mesmo tempo que ressurge no palco da vida terrestre motivado por desejos de crescer espiritualmente dentro das várias coletividades de que fará parte.

Ele é uma alma vivida, talvez mais capacitada que seus pais e avós. As novas gerações têm demonstrado isso. Que não se enganem com sua vestimenta carnal pequenina e frágil.

Por trás dela está um espírito viajor dos milênios que já transitou por outros reinos da natureza, caminhando ?do átomo ao arcanjo?, promovido um dia à condição de criatura humana, ?simples? porque então desprovido das principais faculdades da inteligência, da memória, raciocínio e ?ignorantes? no discernimento do certo e do errado.

Mas hoje, se está ainda distante da perfeição relativa a que se destina, também já deixou longe à retaguarda o primitivismo do instinto autoritário e cego e a sujeição ao determinismo absoluto. Dotado de razão, sentimentos e livre-arbítrio, capaz de reconhecer parcialmente a grandeza divina da qual ele próprio se origina, fará, por certo, esforços hercúleos para assinalar sua nova passagem terrena com os signos do Bem, da paz e da justiça. Com isso desejará constituir uma herança que talvez aproveite ao orgulhoso avô temporário.

Afinal, o ciclo biológico tem que ser cumprido, tal como o suceder da aurora e do ocaso. Uns têm que partir para ceder lugar aos que chegam. Cortinas se abrem para a acolhida do público às reestréias, à incógnita dos novos papéis dos veteranos atores cósmicos. Cortinas se fecham atrás de saídas triunfais ou sob as vaias da consciência nos fracassos a serem apreendidos para se dar a volta por cima no futuro e, um dia, à cena.

Feliz retorno, Vitor.

Colaboração da Associação de Divulgadores do Espiritismo do Paraná ADE-PR. E-mail: adepr@adepr.com.br.

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