Psiquiatria sob um novo prisma

Viviane Goldoni tem 35 anos. É bonita, inteligente e de bom papo. Quem a conhece sequer imagina pelo que já passou. Auxiliar de enfermagem, aposentada aos 29 anos, ela é bipolar. ?Era a única alternativa?, comenta, sobre as mais de 20 vezes que foi internada em hospitais psiquiátricos de Curitiba. ?A medicação era camisa de força química. Eu pedia para os médicos tirarem – eu até babava -, mas não tiravam?, afirma. Se os internamentos tiveram resultado? ?Só pioravam. Meu quadro não era tão grave. A última vez que fui internada foi há dois anos. Somente agora recomeço minha vida. Hoje sei que não preciso ser internada.?

De fato não precisa. Instituída pela Lei Federal da Saúde Mental (10.216), em 2001, a Reforma Psiquiátrica veio trazer outras alternativas de tratamento para doenças mentais. Há cerca de seis anos, tenta-se modificar a rede de atendimento, com o intuito de humanizar. As coisas começam a ser diferentes, mas ainda há muito a fazer para conseguir simultaneamente neutralizar os sintomas, manter o respeito ao paciente e ressocializar.

Em Curitiba, as mudanças começaram antes mesmo da lei. O programa foi implantado em 1999. De acordo com a coordenadora do programa Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde, Cristiane Venetikides, até agora as mudanças foram significativas. ?Curitiba tinha cerca de três mil leitos psiquiátricos. Eram poucas as consultas ambulatoriais, o sistema era fragmentado e, no geral, o único encaminhamento era para os hospitais. Hoje temos 475 leitos (reduziu-se os internamentos). Atualmente são ofertadas 30 mil consultas e temos outras alternativas?, comenta.

Cadastrados pela Secretaria Municipal de Saúde, existem cerca de 50 mil pessoas com transtornos mentais que, conforme a psicóloga, ?hoje têm uma gama maior de serviços à disposição?. ?Temos uma rede maior e mais capacitada. O hospital foca apenas no combate aos sintomas. Já os demais serviços que a pessoa vai precisar durante toda a vida buscam a reinserção na sociedade?, explica Cristiane. Na opinião dela, os avanços ainda necessários são: mais espaços de convivência para os doentes mentais ainda estigmatizados pela sociedade e, por parte dos profissionais, mais apropriação da nova mentalidade.

O presidente da Sociedade Paranaense de Psiquiatria, Osmar Ratzke, concorda que o quadro mudou. ?Hoje 90% dos casos são atendidos e tratados, do início ao fim, em ambulatórios?, cita. No entanto, ele acredita que ?a reforma foi colocada sob enfoque errado?. ?Ainda existem casos que requerem internações. A redução foi drástica, não houve reajuste das diárias, os hospitais psiquiátricos passam por dificuldades e ainda há pacientes que podem ficar desassistidos. Ainda precisamos de um sistema mais integrado. Nenhum serviço resolve os casos graves sozinho?, conclui.

Felicidade dentro de uma casa

Foto: João de Noronha

Maria Ignês e Pedro: casa traz liberdade e tranqüilidade.

As residências terapêuticas são prova de que alternativas existem. Em Curitiba são cinco, mantidas pela Prefeitura em parceria com organizações não-governamentais.

Carregando sofrimento de anos, juntas, sete pessoas com transtornos mentais, ex-asilares de hospitais psiquiátricos, moram em uma casa comum, no bairro Boqueirão. Pedro Liebel é um dos moradores. Ele tem 69 anos e passou mais de 25 no hospital Nossa Senhora da Luz. ?Morar aqui é melhor porque posso ir à missa sozinho, faço meu café, cuido da horta, abro as janelas. Mudou: agora tenho liberdade e tranqüilidade?, comenta. Outra moradora é Maria Ignês Pereira, 54 anos. Ela passou quatro anos no hospital. ?Hoje sou feliz, tenho sossego?, diz, ao mostrar a casa.

Além de uma coordenação geral, cada casa tem a referência que supervisiona a manutenção e as atividades da casa e a orientadora, que fica das 7h às 19h com os moradores. Cada morador recebe benefício de R$ 250, do programa federal ?De volta para casa?.

Ressocializar: o trabalho dos Caps

Curitiba tem 11 centros de atenção psicossocial (Caps). O do Cajuru é um desses. O centro atende 190 pacientes, usuários de álcool e outras drogas: 40 em tratamento intensivo (dias úteis, das 8h às 17h), 60 em semi-intensivo (três períodos por semana) e 90 regulares (três vezes ao mês).

Os pacientes são encaminhados por outros equipamentos da Saúde. No Caps, após avaliação, é feita a proposta terapêutica para, então, começar o tratamento com psiquiatras, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, psicólogos e pelo menos outros seis especialistas.

?O que difere o Caps de um hospital e de um ambulatório é que aqui o trabalho é em grupo e aberto. Trabalhamos em processos: primeiro com a reconstrução da identidade do paciente, em seguida com as outras retomadas – estudo, trabalho, família?, expõe a coordenadora do Caps Cajuru, Simone Perotta. Para ela, o papel dos Caps na reforma é mostrar que o tratamento do doente mental pode ser feito sem que seja segregado.

Hospitais agora são proativos

Foto: João de Noronha

Hospital Nossa Senhora da Luz: referência no Estado.

Segundo o Ministério da Saúde, no Paraná existem 17 hospitais psiquiátricos. Referência entre esses é o Nossa Senhora da Luz, de Curitiba. De acordo com o diretor Dagoberto Requião, também neste espaço houve mudanças. ?A tradição era receber pacientes asilares. Chegamos a ter 660, uma situação complicada. O nosso desafio foi mudar essa realidade de anos?, diz.

O hospital assumiu uma posição pró-ativa, segundo o médico, ?de manter o tratamento integral, por pouco tempo?. Outra mudança foi no perfil dos pacientes. No hospital chegam apenas os casos mais crônicos.

Segundo o médico, na unidade hoje funcionam ambulatórios por especialidades, Caps (Centro de Atenção Psicossocial), hospital dia e unidade integral, preenchendo toda a rede. Cada ala (feminina e masculina) tem 70 pacientes, atendidos por equipes multidisciplinares.

Apesar de ainda existirem 28 pacientes asilares, segundo o diretor, a luta para colocar em prática as concepções atuais continua, sempre visando manter o ?respeito ao indivíduo?.

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