Muitas e múltiplas mães

Nas datas comemorativas, a natureza segue seu curso. Se for para sair, o sol brilhará como previsto. Se for para chover, a água tecerá seus fios como previsto. As estações se sucedem, a vida não pára a olhar a comemoração dos homens. As datas convencionalmente marcadas acontecerão para os vivos. E eles as saudarão, cada um a seu modo. Haverá as saudações, as rememorações, o desfile dos novos cumprimentos sempre os mesmos. São datas preparadas com a antecedência da publicidade, do agendamento das visitas obrigatórias, do ritual consumista, das reações previsíveis.

Assim são os aniversários, os feriados, os dias consagrados a pessoas, idéias e profissões. Feliz isso, parabéns aquilo, abraços, sorrisos, desejos de felicidade. Ao final, a espera de outra data comemorativa e a certeza da repetição do mesmo ritual.

O dia consagrado às mães não foge a todo o aparato de uma data comemorativa. Mesmo sendo assim, é sempre bom receber agrados e abraços. Enquanto eles acontecem, a mãe responsável pode se dedicar à tarefa de buscar nos olhos dos filhos a imagem indecifrável que conduz à indagação temerosa "que mãe sou eu??. Que avaliação sincera e sem retoques meu filho faz de nosso tempo de convivência?

Na expectativa de auxiliar na resposta, busquei parâmetros na literatura, tão pródiga em mães, afetos, resistência e paixões. Essa complexa relação é sempre uma arca do tesouro, um sentido onipresente e uma mina inesgotável para confissões e análises em divãs psicanalíticos. Em rapidez impressionante e abundância expressiva, mães e mães saltam das histórias para este texto. Tento contê-las no limite deste espaço. Algumas consigo prender, outras, porém, ficam à espreita, escondem-se nas entrelinhas, agitam mãos e lançam olhares das bordas do papel. Deixarei a meus poucos e estimados leitores a liberdade para convocá-las tão logo meu texto esteja concluído, e minhas palavras se tenham tornado apenas memória do que foi lido.

Apresento alguns desses tipos.

Mãe-Terra, origem e alimento, proteção e cuidado, aceitação sem reparos e recusas. É a mãe do Patinho feio, fábula sobre a diferença, parábola do marginalizado vitorioso, atestado da harmonia da natureza. Andersen colocou na boca da personagem-mãe o discurso amoroso que tudo compreende: "Ele não é bonito, mas tem bom gênio e nada tão bem como qualquer um dos outros. Se quer que o diga, nada até um pouco melhor. Com o crescimento, creio, ele se tornará mais bonito".

Mãe-Malévola, encarnação do desamor e da disputa. O poder, a ambição e, a busca da eterna juventude a levam a competir com e se necessário, destruir os filhos que gerou. Branca de Neve, dos irmãos Grimm, revela, na persecutória e emblemática figura do Espelho Mágico, a sobreposição do egoísmo da madrasta face má da mãe tradicional ao amor.

Mãe-Medéia, alimentada no desespero, na luta pela sobrevivência, na escuridão dos que não vêem saída, nem futuro. Eurípides, trágico grego, dramatizou sua figura para a posteridade. Mãe que abandona, transfere ao acaso e ao destino o futuro dos filhos, ou o interrompe num ato de vingança, ou de impotência.

Mãe-sacrificial, para quem a própria vida não importa, se puder trocá-la pelo futuro de um filho. Andersen escreveu uma belíssima História de mãe, cuja protagonista luta contra a morte para reaver o filho, e não se importa de doar-se aos poucos para conseguir seu intento: oferece os cabelos, os olhos, a própria vida em troca da salvação filial.

Mãe-Nastácia, a que assume a maternidade em forma de alimentos e serviços. Viajante de tanque e fogão, dispõe a casa e a despensa à vontade e necessidade dos filhos, seus e de outros. Vive a analogia perfeita de servir e amar. No imaginário brasileiro, Monteiro Lobato construiu essa personagem simbólica.

Mãe da Rebeca, do conto de Lygia Bojunga, Tchau. Cada vez mais freqüente na vida social, a mãe que troca de casa e de marido, à revelia do sofrimento dos filhos. Indiferente aos apelos, segue sua paixão pessoal, e, mesmo tomada pela dor, tudo abandona.

Mãe Joana, em cuja casa  somos todos sempre bem-vindos. Verdadeiro Sítio do Pica-pau Amarelo, essa Joana/Dona Benta adota, acarinha e alegra. Acolher e integrar pertencem à natureza dessa mãe-de-todos, figura ideal de uma espécie de maternidade universal.

Mãe de Ariel, do texto de Mirna Pinski, As muitas mães de Ariel, essa figura retrata a conduta efetiva de mães de carne e osso. Rainhas de forno e fogão, executivas de computador e máquina de lavar, carinhosas em tempo de paz, megeras bruxílicas nas horas da guerra, pacientes nos momentos de dor, inquietas durante as ausências, ansiosas em relação ao futuro, madrastas na imposição de limites, sedutoras na alegria, ferozes na defesa dos filhos. Mães de muitas faces, instáveis criaturas humanas, cujos laços indizíveis e inexplicáveis prendem gostosamente os filhos nas tramas da vida.

São muitas as formas da maternidade, são múltiplas as mães, mulheres "desdobráveis", como define Adélia Prado. No dia de hoje, eu as saúdo nas analogias da literatura, nos referenciais da vida. 

Voltar ao topo