À pátria, o amor

Respira-se Brasil aqui no Paraná. O dia reflete paz, o dia é também auriverde, tem o azul do céu, o verde dos campos e matas, é uma bandeira nacional que o sol desfralda na amplidão. E é um modo de ser o brasileiro. A conformação com a natureza e o encanto de viver fazem-no cordial, terno, hospitaleiro. Tolerante, compreensivo para com o próximo. É cordato, concilia, releva a possível divergência. Descobre que só é feliz quem se livra das correntes dos preconceitos. E de seu legado a esperança é a arma poderosa com a qual vence todas as barreiras. A exemplo do camponês, tantas vezes explorado em sua boa-fé, perseverando na labuta das roças. Nós tínhamos orgulho do caboclo, imaginando-o venturoso em seu rancho. No caboclo e a terra víamos a pátria, o céu compensando sua bondade. O brasileiro crê e sonha. Em toda parte revela o bom humor, é de um otimismo contagiante. Procura relacionar-se amigavelmente, graceja, gosta de piadas e é comum vê-lo abrir um riso de troça nos lábios. Ah! um povo divertido. Ignora o que sofre há mais de quinhentos anos. Perplexo, um general francês teve o desplante de afirmar que o País não era sério. Não é fácil ao estrangeiro compreender que o Brasil é um país bom e alegre. Estranha o humor do povo. E se o visse na empolgação das festas, nas de muita ginga com morenas balançando as ancas? Ou nos galpões dos sítios, numa mistura braba, sacudindo-se ao som de violas e sanfonas? A diversão não é menor nos palcos, teatros e cinemas, ou nos campos de futebol com os negaceios e dribles desconcertantes. Também se ovacionam as fintas e malabarismos noutros esportes.

Nada mais natural que o ufanismo. Um povo que sente o belo em volta, qual se desvendasse a olho nu os arcanos do universo. Tudo nos levava a pensar um Brasil épico. Há milênios um Eldorado com tribos indígenas solidárias, dividindo o usofruto da terra, das selvas, do mar e dos rios, da caça e da pesca. As grandes navegações não deixaram de ser uma epopéia. Quando Portugal chegou de mudança nas caravelas, descortinou-se um fantástico real que tanto mexeu com a imaginação dos marinheiros. Colossal a floresta, a flora, a fauna. Bandeirantes intrépidos abalaram os sertões, excederam-se cruelmente na ânsia pelos tesouros, mas além dos horizontes delinearam o mapa da pátria. Incomparável odisséia à resistência e sacrifícios dos escravos negros que, vindos acorrentados nos porões dos navios, o País construíram e eternizaram de raça forte e sentimental. A empolgação tornava tudo belo e fascinante. Em coro se cantava “não há luar como esse do sertão”. Não há pássaros que gorjeiam como o sabiá, a patativa ou o uirapuru. “Jamais verás país algum como este”, recitava-se nas escolas. As levas de retirantes na seca no Nordeste, vistas como odisséia. Causavam admiração tanto os bandos fanáticos quanto o de Lampião. A pobreza tornou-se para sempre pitoresca. Numa canção à favela, o consolo no verso final: “Quem mora lá no morro fica pertinho do céu”. Esse ufanismo era um bem no sentido de que nos fazia sentir que ser brasileiro significava, além do amor ao País, a igualdade entre as pessoas. Faz parte da história, das artes e da literatura. Na verdade, não o abandonaram nem mesmo os autores realistas que destacaram aspectos negativos da sociedade, mas heróicos personagens e tendo por propósito a denúncia de injustiças. As narrativas mais interessantes, nesta ou naquela escola, são as de proezas, aventuras e feitos históricos ou fictícios. Havia, sim, um ufanismo com caráter positivo, romântico. Não havia ceticismo entre nós, muito menos a indiferença. Queríamos um mundo cada vez melhor. O astral, ambiente favorável da cidade, despertava-nos a consciência latente, aquela da profundeza do ser, a nossa alma verdadeira.

Ainda pouco compreendidos, modernistas se insurgiam contra os padrões clássicos e românticos, principalmente do formalismo parnasiano, na busca e revelação da identidade nacional. Embora criticassem o regime de servidões, a exploração e as desigualdades no campo e nas cidades, movia-os também a empolgação num outro estilo, porém no mesmo espírito brasileiro de fé e orgulho. Sua obra não deixava de exaltar a terra e o homem. Como todos os bons autores, deixavam vislumbrar nas entrelinhas a gênese de uma nova Humanidade.

Havia bem-estar no saber, em que se aprendia na vida e na escola. Líamos escritores e poetas, mas da Semana de Arte Moderna só havia a notícia e como a vira Monteiro Lobato. Causava resistência também no ensino a enorme produção de maus e assanhados futuristas. Em muitas casas se encontrava razoável biblioteca. Após a iniciação nas cartilhas, contos, álbuns, jornais e revistas infantis, passava-se pelos livros de aventuras até à leitura de “Os Três Mosqueteiros”, “O Conde de Monte Cristo” e “Os Miseráveis”. Se já nas primeiras séries do curso secundário, o professor indagasse aos alunos “quem já leu tal ou qual autor”, muitos respondiam “que sim” levantando os dedos. Agradavam-nos e líamos mais os nacionais, porém exerciam maior influência as obras de inspiração humanitária. Muito conhecida a de Humberto de Campos. O desejo de praticar um bem tornara-se comum. À noite, alguns de nós procuravam párias nas ruas e becos com o intuito de socorrê-los. Certa vez, Gabriel e eu de uma tábua fizemos padiola e transportamos um deles que agonizava até à sua tapera. Nunca esqueci porque tive a idéia de imitar Humberto de Campos numa crônica que não escrevi, na qual diria que o pobre homem simbolizava um Brasil que precisávamos salvar… Noutra feita, fiquei muito desenxabido ao acordar um bêbado estirado num banco e, procurando aconselhá-lo, e receber um safanão, xingado de moleque idiota. Apesar de alguns carões, sentíamo-nos felizes. Assim éramos evolucionários.

Na história de cada um de nós estava implícita a da família. Uma leitura diversificada não era o hábito apenas dos Madureiras. E não eram poucas as que se inclinavam à solidariedade e boas ações.

Tinha havido tensões na cidade durante a guerra passada e a ditadura no País. Na sala de aula, um professor nos dizia que éramos todos poupados em nossa terra, insinuando que por predestinação, longe dos horrores que aconteciam noutros continentes. De fato, ainda predominava a barbárie noutro lado do mundo, enquanto cá vivíamos uma era dourada. Inesquecível a sua preleção:

“- Cabe a esta geração um papel importante na luta por um mundo melhor. Por isso, deve ter sido poupada. O maior crime de todos é o que se comete contra a humanidade, a guerra. Uma é igual a outra, pouco importam os motivos. As causas são sempre as mesmas. Assim como diz o ditado “em casa onde falta pão, todo mundo grita e ninguém tem razão”, acontece o mesmo num mundo sem justiça e de desigualdades.”

Fora um mal a desunião causada pela política. Culpa de uma minoria, que o povo reprovava. Com a disputa de nações pelo domínio do mundo, difundiam-se preconceitos, surgiam desavenças e perseguições absurdas. Equivocados pela propaganda odiosa desta ou daquela ideologia anti-humanista, muitos sofriam as conseqüências. Até mesmo o proprietário negro de um hotel fora preso e seu estabelecimento pichado com uma cruz suástica. Mal-intencionados acusavam por vingança os desafetos. Mas ao vencerem o terrível conflito as chamadas democracias, um mal menor vitorioso, pelo menos por algum tempo, constituía um bem. De fato, fôramos poupados em nossa cidade. Nesta, uma simples mostra do Brasil, o povo era tão cordial e, por isso democrático, independentemente da forma de governos. Talvez seja esta a melhor explicação para a existência de tantas famílias generosas e educadas.

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