Multas ?no valor correspondente ao veículo infrator?: confisco ou sanção isonômica?

A notícia de um novo Projeto de Lei de Trânsito, divulgada pelo Ministério da Justiça na primeira semana de 2008, colocou o fenômeno trânsito em destaque e despertou polêmica em relação a determinados tópicos (informalmente divulgados, mesmo antes da publicação oficial do Projeto)(1). Um dos temas mais polêmicos encontra-se relacionado à imposição de sanções pecuniárias (denominadas Multas) ?no valor correspondente ao veículo do infrator?.

A primeira noção que precisa ser afastada do Projeto é a possibilidade de confisco do veículo; ou seja, ?ato pelo qual se apreendem e se adjudicam ao fisco bens pertencentes a outrem, por ato administrativo ou por sentença judiciária, fundados em lei?(2). Desse modo, espera-se que a expressão ?no valor correspondente ao veículo do infrator? não imponha à penalidade administrativa de Multa a natureza de confisco; principalmente se a imposição dessa sanção puder ser realizada no local da infração (de forma autônoma ou associado a outras medidas administrativas, como a retenção ou a apreensão do veículo), em flagrante violação ao princípio do devido processo legal (art. 5.º, inc. LIV, da Constituição da República, de 1988 – CR/88). Observa-se, aliás, que a apreensão administrativa do veículo (prevista no art. 262, do Código de Trânsito Brasileiro – CTB) constitui ?uma medida inconstitucional, caracterizada até como confisco, e que, na verdade, nada mais deseja do que cobrar as multas impostas, de modo prévio, cerceando a defesa ampla, uma vez que o art. 282, e § 4.º, determina que a notificação ao proprietário ou ao infrator deve conceder prazo para recurso?(3).

O confisco de veículos por infrações de trânsito encontra-se, felizmente, banido de nosso sistema jurídico desde a publicação da Lei n.º 6.575, de 30/9/1978 (que dispõe sobre o depósito e venda de veículos removidos, apreendidos e retidos, em todo o território nacional). Sanção semelhante, denominada perdimento de bens, somente poderá ser imposta por determinação judicial (como efeito da sentença penal condenatória) em relação aos instrumentos e produtos do crime (art. 91, inc. II, do Código Penal) e na hipótese de veículos utilizados no transporte ilícito de drogas (art. 62, Lei n.º 11.343, de 22/8/2006).

Outro ponto a ser destacado volta-se à possibilidade de imposição de Multas em valor proporcional à avaliação do veículo. A iniciativa constitui quebra dos sistemas punitivos anteriormente previstos pelas Leis de Trânsito brasileiras e grave violação ao princípio de isonomia (ou princípio de igualdade – que será destacado adiante), e não deveria ser adotado pela legislação de trânsito brasileira.

A doutrina destaca a existência de cinco sistemas de determinação de penas: (i) penas absolutamente determinadas, como ocorre atualmente com a Multa de trânsito; (ii) penas absolutamente indeterminadas, que pode ser a proposta constante do Projeto; (iii) penas determináveis dentro de margens, que era o sistema previsto pelo Código de Trânsito de 1966, e atualmente utilizado pelo Código Penal brasileiro; (iv) penas relativamente determinadas quanto ao início, e (v) penas relativamente determinadas quanto ao fim(4).

O legislador do atual CTB (instituído pela Lei n. 9.503/97) adotou um sistema misto de determinação de sanções, impondo: (a) para a fixação da penalidade de Multa, o sistema de valores absolutamente determinados (art. 258);(5) (b) para a penalidade de Cassação da Licença para Dirigir, o prazo único de dois anos (art. 263, § 2.º), e (c) para a penalidade de Suspensão da Licença para Dirigir, o sistema de prazos determináveis dentro de margens, que pode variar de um mês a dois anos de suspensão (art. 261, do CTB).

De positivo, em relação ao sistema de penas absolutamente determinadas, ?destaca-se o critério objetivo para imposição dessa sanção pecuniária, reduzindo a margem de discricionariedade das decisões e a possibilidade de recursos em relação à dosimetria da penalidade. De outra sorte, critica-se o sistema adotado em face da impossibilidade de criação (e eventual aplicação) de circunstâncias atenuantes ou agravantes, bem como a violação ao princípio de isonomia material, que impõe tratamento desigual na medida em que as pessoas se desigualam, visando uma ?igualdade real e efetiva perante os bens da vida?(6).?(7)

A eventual adoção de um sistema de penas absolutamente indeterminadas, fundado, por exemplo, ?no valor correspondente ao veículo do infrator? ou em valor proporcional à avaliação do veículo, causaria insegurança jurídica, permitindo julgamentos menos objetivos e com margem de discricionariedade às Autoridades de Trânsito em relação ao valor da sanção pecuniária a ser imposta. O risco é grande e precisa ser levado em consideração pelo legislador (e pelo grupo de trabalho formado pelas secretarias Executiva e de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça), caso não sejam criados critérios objetivos para determinar-se o quantum da Multa. Por tais motivos, entende-se temerária a adoção de um sistema punitivo fundado ?no valor correspondente ao veículo?.

A realização do trânsito em condições em seguras, na realidade, não depende de uma nova Lei de Trânsito, e sim da divulgação e efetivo cumprimento das normas que há dez anos regem a utilização das vias terrestres do território nacional, e que, no entanto, vêm sendo ignoradas e violadas diariamente. Mais importante que uma nova lei é o cumprimento da lei, seja ela nova ou antiga.

Caso o atual sistema punitivo do CTB venha a ser objeto de debate, visando a realização de um Projeto de Lei de Trânsito, entende-se que o sistema de penas determináveis dentro de margens alcançaria melhores resultados, sem o risco de transformar-se em instrumento de confisco, e permitindo distinguir-se bons e maus motoristas, em atenção ao princípio de isonomia e de individualização das sanções impostas (art. 5.º, inc. XLVI, CR/88). Por meio desse sistema (que já foi adotado pelo 3.º Código Nacional de Trânsito, de 1966, e que é empregado atualmente pelo Direito Penal), a lei fixa limites mínimos e máximos que devem ser observados pelo julgador. Para a fixação da pena justa devem ser observados critérios (previstos em lei), de modo a ajustar a sanção conforme o mérito (ou demérito) do infrator e as conseqüências de seus atos, de modo a prevenir a realização de novas infrações. Assim, infratores contumazes (considerados reincidentes) poderiam receber sanções mais graves (ou de maior duração) que às impostas a condutores que não tenham cometido infrações nos últimos doze meses.

A título de sugestão, a doutrina pátria oferece algumas propostas de alteração da legislação de trânsito,(8) em que se destacam: (i) uniformização do sistema de determinação das sanções do CTB, aplicando-se o sistema de penas determináveis dentro de margens a todas as penalidades de trânsito, de modo a permitir a individualização da penalidade, tendo em consideração o mérito do condutor e as conseqüências da infração. Como reflexo da adoção desse sistema, (ii) poderia ocorrer a introdução de causas especiais de redução de penalidades, a exemplo das denominadas referências elogiosas. Assim, condutores que não realizassem infrações por longo período de tempo (cinco anos, por exemplo); que comprovassem a realização de ato humanitário em acidente de trânsito; que restituíssem aos passageiros ou à polícia objetos de valor esquecidos em seu veículo ou encontrados em via pública, ou que prestassem auxílio espontâneo ou fossem requisitados pela polícia na intervenção de crimes,(9) poderiam ser beneficiados com redução no valor da Multa ou no período de Suspensão da Licença para Dirigir. Diversamente, (iii) poderiam ser introduzidas causas especiais de aumento de penalidades, nas hipóteses de reincidência específica e de envolvimento em eventos culposos de trânsito. Assim, o infrator contumaz seria apenado com sanção mais grave que os demais condutores.

Outros institutos jurídicos poderiam, também, ser agregados com sucesso à legislação de trânsito, visando aprimorar as habilidades dos condutores de veículos e incentivar a educação para o trânsito. Exemplo interessante volta-se à criação de Cursos de Reciclagem Facultativos, com natureza jurídica de causa especial de redução dos pontos de demérito (acumulados pelo condutor) ou do período das penalidades de Cassação e de Suspensão da Licença para Dirigir. Esse e outros institutos previstos na legislação estrangeira serão oportunamente desenvolvidos.

O resgate do sistema de penas determináveis dentro de margens constitui meio de realizar os princípios constitucionais de igualdade e de individualização da pena, bem como promover o alinhamento do sistema punitivo do Direito de Trânsito à Teoria Geral do Direito Penal.

As diferentes matizes do princípio de isonomia podem até constituir ?direitos abstratos? ou ?padrões vagos?, como afirma DWORKIN,(10) porque podem ser sustentadas por diferentes concepções, que darão origem a conceitos e orientações distintas. Não obstante a dificuldade em precisar esses conceitos, entendo que, ao menos no Direito de Trânsito, não é o poder econômico ou o valor do veículo que desiguala os condutores, e sim a atitude desses em relação aos demais usuários da via e à legislação de trânsito. Desse modo, utilizar o ?valor correspondente ao veículo do infrator? como elemento discriminador (para fins de determinação do valor das Multas de trânsito) viola o princípio de isonomia por ausência de pressupostos lógicos a legitimar o tratamento diferenciado aos usuários das vias terrestres. Conforme lição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO ?as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição?(11). Assim, conclui o autor, ?o que autoriza discriminar é a diferença que as coisas possuem em si e a correlação entre o tratamento desequilibrador e os dados diferenciais radicados nas coisas?(12).

O que nos torna efetivamente iguais (ou desiguais), no uso das vias terrestres, não é a questão pecuniária, e sim as normas de circulação e de segurança no trânsito (que deveriam ser cumpridas por todos!) e a necessidade de um ato administrativo, denominado licença para que se possa conduzir veículos automotores no território nacional. O Direito de Trânsito não se refere ao poder econômico dos condutores (como elemento discriminador) e sim à igual necessidade de todos em relação à obtenção da licença para dirigir (ato condição) e à submissão ao fiel cumprimento da legislação de trânsito (ato regra), em busca do trânsito seguro.

O sistema punitivo de trânsito (atual ou futuro) não deveria priorizar a pena pecuniária (i.e., a Multa), e sim colocar-se em torno das penalidades de Cassação e de Suspensão da Licença para Dirigir, que há anos são consideradas por especialistas como ?os mais eficazes freios para conter as calamidades praticadas pelos maus motoristas ou pelos pretendentes à habilitação?(13).

Nesse sentido, o legislador da atual Lei de Trânsito foi sábio ao permitir a suspensão da licença para dirigir daquele que (i) praticar determinadas infrações (de natureza grave ou gravíssima), previamente descritas em lei (em atenção ao princípio da legalidade), ou que (ii) acumular vinte pontos de demérito, no período de doze meses (art. 259 e 261, § 1.º, CTB). Assim, na hipótese de infrações mais graves, além da sanção pecuniária, também poderá ser imposta a penalidade de Suspensão da Licença para Dirigir, punindo-se com maior gravidade condutas que produzam maior risco à segurança do trânsito. O mesmo poderá ocorrer em relação ao condutor contumaz, que viola reiteradamente as normas de trânsito, acumulando pontos de demérito em seu prontuário.

Como se percebe, a questão não é criar uma nova legislação de trânsito, e sim cumprir e fazer cumprir as normas que hoje existem junto ao Código de Trânsito Brasileiro.

Os esforços na busca de um trânsito mais seguro são importantes, e muito bem vindos. Creio, no entanto, que o foco deveria ser diverso: não temos necessidade de novas leis de trânsito; alguns ajustes talvez. Porém, a real necessidade volta-se ao cumprimento da lei, à educação para o trânsito, visando divulgar as regras de circulação e de segurança no trânsito, e ao policiamento, como instrumento indispensável ao efetivo cumprimento do atual Código de Trânsito Brasileiro.

Se as propostas que integram o futuro Projeto de Lei de Trânsito realmente quiserem realizar o princípio do trânsito em condições seguras, deverão incentivar a educação para o trânsito, fortalecer os órgãos de policiamento ostensivo, e manter seu sistema punitivo estruturado em torno da licença para dirigir.

Notas:

(1)     Consta do site do Ministério da Justiça que ?o governo deve enviar em fevereiro ao Congresso Nacional proposta que aumenta as penas para os motoristas responsáveis por acidentes de trânsito?. Disponível em www.mj.gov.br acesso em 7/1/2008.

(2)     SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 7.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1982. vol. I, p. 505.

(3)     PINHEIRO, Geraldo de Faria Lemos; RIBEIRO, Dorival. Código de Trânsito Brasileiro Interpretado. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000. p. 422-423.

(4)     LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípio da legalidade penal. São Paulo: RT, 1994. p. 137.

(5)     Atualmente, os valores das Multas de trânsito encontram-se fixados por meio da Resolução n.º 136 (de 2/4/2002), do Conselho Nacional de Trânsito, nos seguintes termos: I- Infração Gravíssima, R$ 191,54; II- Infração Grave, R$ 127,69; III-Infração Média, R$ 85,13; e IV-Infração Leve, R$ 53,20. Estes valores podem ser multiplicados por até cinco, na hipótese de infração agravada (nos termos do § 2.º, do art. 258, do CTB).

(6)     BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 21. ed., São Paulo: Saraiva, 2000. p. 179.

(7)     HONORATO, Cássio M. Sanções do Código de Trânsito Brasileiro: análise das penalidades e das medidas administrativas cominadas na Lei n.º 9.503/97. Campinas: Millennium, 2004. p. 76.

(8)     Em relação às sugestões realizadas, confira HONORATO, Cássio M. Sanções do Código de Trânsito Brasileiro, p. 221-231.

(9)     As presentes hipóteses constavam expressamente do artigo 288, do Decreto paulista n.º 6.856, de 1934 (denominado Primeiro Regulamento Geral de Trânsito para o Estado de São Paulo). Em relação à ?Evolução do trânsito no Brasil?, confira HONORATO, Cássio M. Sanções do Código de Trânsito Brasileiro, p. 17-41.

(10)     DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 279.

(11)     BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3.ª ed., 7.ª tirag. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 17.

(12)     BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 34.

(13)     PINHEIRO, Geraldo de Faria Lemos. A reincidência no Código de Trânsito Brasileiro breve estudo comparativo. Boletim IBCCrim. São Paulo, n.º 112, mar. 2002. p. 08.

Cássio M. Honorato é promotor de Justiça no Estado do Paraná, mestre em Direito e especialista em Trânsito pela Polícia Rodoviária de SP.

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