Luiz Câmara/ Bruna Amatuzzi

Gravações e escutas ambientais

Breves observações sobre sua utilização nos crimes contra a ordem econômica e contra a administração pública.

No controle ou combate à criminalidade econômica (especialmente crimes contra o sistema financeiro nacional, contra a ordem tributária e de lavagem de dinheiro) e nos crimes contra a administração pública, ganhou destaque a utilização de métodos não convencionais de busca da prova. A prova testemunhal que, desde sempre teve protagonismo na esfera processual penal, cedeu seu posto a outros meios de prova. Aí ganham destaque evidente as interceptações telefônicas, secundadas pela quebra de sigilo bancário, quebra de sigilo telefônico, quebra de sigilo fiscal e as escutas ou gravações ambientais. A novas e diferenciadas formas de criminalidade se impõem novas e distintas formas de aquisição da prova.

Há equação de difícil resolução relativamente a essas formas de obtenção da prova, pois são todas invasivas da privacidade e intimidade do acusado ou investigado, limitando direitos constitucionalmente previstos (Constituição da República, art. 5.º, X e XI). Mais: podem importar em verdadeiro atentado ao princípio da dignidade da pessoa humana à medida em que na utilização de tais meios se olvide da condição de sujeito de direitos daquele que está sob investigação ou sendo processado. Constata-se aí o perigo de objetização ou coisificação do homem (GUNTHER DÜRIG), que, a partir de matriz kantiana, encontra barreiras intransponíveis no constitucionalismo do pós-guerra e que também no Brasil recebeu consagração constitucional (art. 1.º, III, da Constituição da República). É sob essa ótica que se fazem as breves observações abaixo atinentes especificamente às escutas ou gravações ambientais.

Cabe acrescer que estas últimas formas de busca da prova podem ainda contemplar eventual confronto com o direito de não auto-incriminação (CLAUS ROXIN).

Talvez em face da falta de regulamentação no direito brasileiro acerca da possibilidade de se proceder às gravações ambientais, a interceptação telefônica tornou-se o meio de prova mais utilizado na esfera dos crimes cometidos contra a ordem econômica, tendo em vista que esse meio probatório foi devidamente regulamentado pelo legislador ordinário através da Lei n.º 9.296/1996. Não se pode olvidar, por outro lado, que a interceptação telefônica está no centro do palco em que se encontram as chamadas investigações preguiçosas, “feitas de escutas que tentam pescar e surpreender alguém na prática de um crime” (JOSÉ ANTONIO BARREIROS).

O presente artigo busca ressaltar a importância das gravações e escutas ambientais no âmbito do processo penal brasileiro, mais especificadamente em relação aos crimes empresariais (onde a empresa é locus privilegiado para sua ocorrência) e contra a administração pública, assim como intenta promover brevíssima comparação entre o sistema nacional e aqueles de alguns países da Europa Continental, tais como a França e Itália. Tem ainda como intuito evidenciar os aspectos mais relevantes previstos pelos ordenamentos jurídicos de cada país, isto é, as respectivas situações de regulamentação, assim como a (des) necessidade de decisão judicial para que sejam realizadas escutas e gravações ambientais.

As assim nomeadas gravações e escutas ambientais têm como característica serem realizadas no meio ambiente (com o auxílio de gravadores, por exemplo, assim como com equipamentos capazes de captar sons e imagens). Vale dizer, em locais físicos e constituem importantes meios de prova no sistema processual penal brasileiro, principalmente no que tange aos crimes contra a ordem econômica. Esses meios podem ser considerados clandestinos ou autorizados, pois enquanto a gravação ambiental clandestina caracteriza-se por ser “desconhecida por um ou por todos os interlocutores”, não possuindo ainda autorização judicial para ser executada, a autorizada é proveniente de decisão judicial, expressando-se também quando os interlocutores possuem ciência da sua realização, autorizando-a (EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA).

No Brasil não há qualquer espécie de regulamentação para utilização desse meio probatório, motivo pelo qual parece razoável se requerer, essencialmente, autorizativo judicial (obviamente fundamentado) para ser considerado lícito e válido para o processo.

Diante da necessidade da intervenção judicial, as escutas ambientais clandestinas deveriam ser consideradas ilegais e, via de regra, inadmissíveis no processo, vez que podem configurar provas obtidas ilicitamente, tendo em vista confrontarem dois direitos fundamentais, de terceiro ou do acusado. São eles: (i) privacidade e (ii) intimidade. Como dito, parecem também atentar contra a dignidade humana.

Há, contudo, uma certa tolerância para a admissão de gravações ambientais não autorizadas. Assim, de forma uníssona e corretamente, se entende que é desnecessária intermediação judicial quando a gravação é utilizada pro reo: a doutrina nacional entende, em sua maioria, que as gravações ambientais são consideradas lícitas quando comprovam a inocência do acusado, por exemplo. A título exemplificativo, as gravações ambientais são lícitas quando comprovam a inocência daquele que as faz ou utiliza, dando-se a comprovação da não participação na prática delitiva justamente pela gravação efetuada sem prévia autorização judicial ou sem conhecimento ou consentimento dos interlocutores ou de parte deles.

O nível de complexidade atinente à recepção e aceitação de gravações ambientais não autorizadas judicialmente se amplia consideravelmente quando pode ela ser utilizada contra reo, o que tem sido aceito pelos Tribunais e, não raro, pela doutrina. Aqui comumente se utiliza o princípio da proporcionalidade para, no confronto entre direitos fundamentais, lançar veredicto favorável à validade da prova.

Diferentemente do Código de Processo Penal brasileiro, que não prevê qualquer regulamentação acerca das escutas e gravações ambientais, o Código de Processo Penal francês caracteriza-se por ser minucioso e detalhado, ao contemplar três dispositivos que versam sobre tais meios de prova, em especial sobre a necessidade de autorização judicial, sua necessária fundamentação e a duração da execução de tais medidas. O primeiro deles é o artigo 706-96 estabelecendo que se houver necessidade de captação de alguma informação sobre os crimes previstos no artigo 706-73, o juiz poderá autorizar motivadamente a gravação de diálogos entre pessoas. Acrescenta, ainda, que tais meios de prova podem ser utilizados sem o consentimento dos indivíduos envolvidos, tanto em locais públicos como em locais privados [tais como carros, escritórios e residências], mas, sempre, sob supervisão do magistrado. Ainda no Direito francês o artigo 706-97, por sua vez, estabelece que todas as decisões que autorizam as gravações ou escutas devem ser judicialmente fundamentadas, especialmente em relação à causa [crime] que lhe deu ensejo, bem como no que concerne à duração para a execução de tais medidas. Por fim, o artigo 706-101 determina que as autoridades competentes, sejam elas os magistrados ou os oficiais de polícia, deverão arquivar, tão somente, os trechos dos relatórios, das imagens ou das conversas gravadas que forem relevantes para a obtenção da verdade no processo, além de prever a possibilidade de tradução, por meio de intérprete, das conversas em língua estrangeira, conforme a necessidade de cada caso.

A regulamentação do direito francês acerca das gravações e escutas ambientais se aproxima das disposições da Lei de n.º 9.296/1996 que, no Brasil, dispõe sobre as interceptações de comunicações telefônicas no direito brasileiro. Isso porque ambas as legislações prevêem, especialmente, a necessidade de decisão judicial fundamentada para a execução de tais medidas, bem como os seus respectivos prazos de duração.

Na esfera do direito processual italiano, a licitude da utilização de tais meios probatórios vem expressamente prevista no artigo 266, n.º 2, do Código de Processo Penal de 1988. Tal disposição prevê a necessidade de “fundado motivo para se supor que, nos locais indicados pelo art. 614 do Código Penal”, sejam eles residências, domicílios ou locais de permanência prolongada, esteja ocorrendo a prática de atividades tidas como criminosas.

No Brasil se demonstra a crescente importância das escutas e gravações ambientais especialmente no âmbito dos crimes contra a ordem econômica ou contra a administração pública. Lembre-se, a propósito, recente investigação no Distrito Federal em que o Governador Distrital foi alvo de gravações ambientais. Sob a suspeita de estar praticando crimes lesivos ao erário, foram realizadas gravações que, a princípio, teriam corroborado as suspeitas da prática de delitos. Sublinhe-se que foi, inclusive, decretada a prisão preventiva do chefe do Executivo distrital, extraindo-se também de uma gravação ambiental a prova da presença de pressuposto intraprocessual para a decretação da medida cautelar. A imposição desta se deu sob o fundamento de que a autoridade executiva investigada atentava contra a produção probatória, intercedendo junto a testemunhas.

Refira-se, por fim, que, para se estabelecer o alcance, os limites e as possibilidades de utilização desse meio probatório no processo penal contemporâneo é impositiva a sua regulação legal. A obrigatoriedade de decisão judicial (fundamentada) quando a prova é realizada contra reo aparece como imperativo a ser observado. Tal oportunidade, lembre-se, está sendo desperdiçada pelo Projeto de Código de Processo Penal (de n.º 156/09) ora em discussão no Senado Federal. Não deveria sê-lo, sobretudo quando a cultura do controle (GARLAND) ultrapassa fins meramente preventivos de condutas delitivas e é também instrumento – eficaz – na prova da prática de infrações penais.

Luiz Antonio Câmara é mestre e doutor em Direito pela UFPR. Professor Titular de Processo Penal do Unicuritiba nos cursos de graduação, especialização e mestrado, no ICPC, na ABDConst e na ESA/OAB-PR. Advogado criminal. lcamara@camaraeassociados.com.br

Bruna Amatuzzi é acadêmica do 9.º período da Faculdade de Direito do Unicuritiba. b_amatuzzi@hotmail.com

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