Doutores? Selo da Vaidade

Navegando pela internet, deparamo-nos com uma preciosidade, num site especializado em informativos jurídicos, intitulada “Doutores e `doutores'”, que trata das vaidades e dos arbítrios do bacharelismo brasileiro, assinado por Marcelo Dolzany da Costa – juiz federal em Belo Horizonte, ex-diretor cultural da Ajufe e que já atuou no Tribunal da ONU para Crimes de Guerra no Timor Leste -, cuja transcrição se mostra imperativa.

“Ao visitar um songboook onde o jornalista Humberto Werneck descreve a adolescência da `rara unanimidade’ Chico Buarque, saboreei um interessante trecho que bem retrata, incidentalmente, as vaidades – e os arbítrios – do bacharelismo brasileiro. O texto narra a detenção de Chico em uma delegacia paulistana, fato que irritou seu velho pai Sérgio, a quem informaram que o responsável pelo abuso `era o doutor fulano’. O velho historiador, indignado, começou a gritar: `doutor o quê? doutor em quê?’

Outros mundos também ainda conservam essas vaidades. Médicos após residência já se consideram `doutores’, enquanto engenheiros, que nem residentes foram, já incluem o `dr.’ mágico nas placas de obras.

A releitura daquelas páginas era para lembrar à turma da secretaria da vara que ‘doutor’ é título acadêmico outorgado àqueles que defendem tese de doutorado, assim como `professor’ ou `mestre’ é de uso exclusivo dos que se dedicam ao magistério após a conclusão do mestrado.

Felizmente até a Presidência da República – por enquanto ocupada por um professor e doutor – já editou um Manual de Redação onde esse truísmo é reiterado. Também descobri que o `digníssimo’ antes do cargo do destinatário é outra bobagem. `Todo agente público tem como re-quisito de investidura a dignidade, logo é redundância chamá-lo digníssimo”, explica o Manual.

Adiante me veio um artigo do magistrado aposentado Aristides Medeiros, que repudia recente mudança do título dos juízes de tribunais regionais federais. Para ele, em incorrigível articulação, o título `desembargador federal’ fere a Constituição, que sempre fala em `juízes federais’ ou `juízes de tribunais federais’ e reserva o primeiro tratamento exclusivamente aos juízes estaduais de segunda instância, aqueles que julgam os recursos antigamente chamados de `embargos’, daí a explicação do léxico tão arraigado à tradição judiciária brasileira.

A assessoria de imprensa do Superior Tribunal de Justiça noticiou que o ministro Sálvio de Figueiredo defenderia naqueles dias sua tese de doutorado. Figueiredo é um dos brasileiros vivos mais respeitados em direito processual e coordenador das pequenas reformas em nossas leis de processo. Aquilo me comprovava que os títulos acadêmicos nascem de família diferente daquela em que brotam os juristas, médicos e engenheiros.

Sou daqueles pouco afeitos aos salamaleques, especialmente quando indevidos. Aqui na secretaria não há doutor, mas juiz. Não sou mestre nem doutor. A palavrinha é simples, não oferece riscos nos endereçamentos e nem diminui o respeito, muito menos a responsabilidade. Isto basta: é a prova de quem `quem dignifica o cargo é o homem’. Ainda estou longe – e nem chegarei – à perfeição que se exige de quem julga os semelhantes. Já compreendi que títulos não significam respeito, e sabedoria é artigo fora de mercado.

Os romanos advertiam: ‘A cada um o que é seu’. Eu, em minha insignificância cabocla, acresço: A cada profissional o adequado tratamento’. Juiz pode ser `meritíssimo’ e `excelência’, mas será `doutor’ apenas quando apresentar sua tese a uma banca e esta a tiver merecedora de um doutoramento. Qualquer outro pronome será tola bajulice ou compreensível futilidade dos que prestigiam mais a forma que o conteúdo.

Os cursos jurídicos foram instituídos no Brasil por obra do decreto imperial de 1.º de agosto de 1825. Um de seus artigos outorgava aos concluintes da faculdade de Direito o título de `doutor’. As oligarquias não mais precisariam enviar seus filhos à Universidade de Coimbra, mas a Pernambuco e São Paulo. Rompia-se um dos laços mais fortes com a Metrópole.

O advento da República ainda esperaria a década de 30 para que se estabelecessem as bases de um sistema nacional de educação. A Constituição de 1934 explicitou a competência da União para legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional. A influência entre nós remonta à unificação italiana na segunda metade do século XIX. Um exemplo dessa inspiração é a lei piemontesa de 1861, cujos propósitos urgentes eram a erradicação do analfabetismo e a implantação de uma língua nacional como fator de consolidação do movimento de Garibaldi (BARBAGLI, 1974: p. 29, apud SAVIANI, 1997: p. 205). No Brasil, o espírito federativo desprezado na República Velha ressurge para reconhecer a cooperação entre os Estados-membros e a União na política de ensino.

Para encurtar a referência à legislação nacional, recuo o suficiente para lembrar nossa primeira Lei de Diretrizes e Bases – LDB, a lei 4.024, de 20/12/1961. Seu artigo 69 previu que `nos estabelecimentos de ensino superior podem ser ministrados (…) os cursos de graduação, pós-graduação e de especialização’. O legislador deixou bem claro que tais cursos não eram sinônimos: graduado é graduado, pós-graduado é pós-graduado, especialista é especialista.

O art. 17 da lei 5.540, de 28/11/1968, a Lei da Reforma Universitária, praticamente reiterou a classificação acima e aproveitou para acrescer o verbete ‘aperfeiçoamento’ aos cursos de especialização. Em passagem anterior, a mesma lei atribuiu à Câmara de Educação Superior, na tarefa de assessoramento ao ministro da Educação e do Desporto, o poder-dever de deliberar sobre (a) diretrizes curriculares para os cursos de graduação, e (b) os relatórios para reconhecimento periódico de cursos de mestrado e doutorado (art. 9.º, §2.º, letras ‘c’ e ‘g’). Como se vê, a distinção entre os três graus acadêmicos continuou.

A vigente LDB – a lei 9.394, de 20/12/1996, promulgada exatamente 35 anos depois da lei 4.024 – classifica a educação superior e cursos e programas (a) seqüenciais, (b) de graduação, (c) de pós-graduação (mestrado e doutorado, especialização, aperfeiçoamento e outros), e (d) extensão (art. 44, n.ºs I a IV). A nova LDB reafirma a necessidade de reconhecimento de diplomas de mestrado e doutorado expedidos por universidades estrangeiras (art. 48, §3.º). A pretexto de qualificar o corpo docente, taxativamente exigiu que pelo menos um terço contasse com ‘titulação acadêmica de mestrado ou doutorado’ (art. 52, II, e art. 66).

Temos leis em abundância – todas posteriores, específicas, hierarquicamente superiores e expressamente incompatíveis com a ordem constitucional do Império – para concluir que não faz sentido a titulação de ‘doutor’ outorgada no decreto de 1825. Está revogado o vetusto decreto (art. 2.º, §1.º, do decreto-lei 4.657, de 4/9/1942, ou Lei de Introdução ao Código Civil).

Um caso de revogação semelhante se registra com um decreto da Regência em 1831. A deposição de Pedro I precipitou a formação de uma guarda nacional cujos postos militares eram colocados à venda. Proprietários e afins, mediante paga de até 200 mil réis anuais, eram agraciados com os títulos de tenente, capitão, major, tenente-coronel e coronel. Aí se enraíza legalmente o instituto do coronelismo tão caro à democracia brasileira. Ninguém duvida que os subseqüentes Estatutos Militares da vida republicana revogaram tais titulações.

Portanto, senhores doutores e `doutores’: coronéis hoje, por lei, só nas Forças Armadas; para os outros `coronéis’ e `doutores’, lei para quê?”.

José Guilherme Xavier Milanezi

é bacharel em Direito pela Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro, de Jacarezinho-PR, e assessor jurídico em Curitiba-PR.

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