CPIs e o controle da corrupção

Ferrajoli, um dos maiores filósofos na atualidade, ao descrever o Estado moderno procurou enfatizar sua tríplice crise: (a) crise do Estado nacional; (b) crise do Estado de bem-estar social e (c) crise de legalidade (Derechos y garantias, Madrid: Ed. Trotta, 1999, p. 15 e ss.). Essas três crises, entretanto, não individualizam com precisão integral o Estado brasileiro que enfrenta uma quarta crise: crise de moralidade. Retrato fiel dessa crise é, sem sombra de dúvida, o próprio parlamento nacional, que não só é o principal protagonista dos "mensalões" como não foi cuidadoso nem sequer no momento da eleição do presidente da Câmara dos Deputados, que é defensor ardoroso do nepotismo, de um "acordão" salvador de mandatos etc.

Não há dúvida que toda corrupção política deve ser rigorosamente investigada. E que as CPIs poderiam cumprir um relevante serviço para a nação, passando-a a limpo. Sabe-se que as CPIs não podem fazer tudo, mas podem muita coisa. Desde logo, contam elas com todos os poderes investigativos do juiz (CF, art. 58, parágrafo 3.º). Isso significa que tudo que o juiz pode determinar no curso de uma investigação as CPIs também podem. Ressalva deve ser feita em relação às reservas constitucionais de jurisdição. Nesse sentido, pelo menos três poderes são reservados com exclusividade aos juízes: (a) decretação de prisão (excluindo-se o flagrante, que pode ser levado a cabo por qualquer pessoa); (b) busca e apreensão domiciliar e (c) interceptação telefônica.

Fora disso, as CPIs contam com amplos poderes investigatórios e decisórios sobre o fato determinado que a originou. Se o direito vigente lhes confere tantos poderes, por que seus resultados têm sido tão escassos e restritos?

Em primeiro lugar porque lhes falta muita competência técnica e jurídica. Seus integrantes fazem o que podem, dentro dos seus limites cognitivos, materiais, técnicos (investigativos) e jurídicos. Nunca fizeram qualquer curso específico de investigação. Não contam com assessoria suficiente em muitos campos de trabalho. A complexidade de uma investigação desse porte está diametralmente descompassada em relação à estrutura e competência das CPIs.

Logo após as contundentes revelações do próprio Duda Mendonça de que recebeu dinheiro fora do Brasil em várias contas correntes, o que mais se ouviu, dentro das próprias CPIs, foi: somente a Polícia Federal e o Ministério Público é que terão condições de aprofundar essa investigação! Os incontáveis mandados de segurança deferidos pelo STF contra suas decisões, por falta de fundamentação adequada de medidas restritivas de direitos, revelam outro desconhecimento dessas Comissões: o técnico-jurídico. Que também já esteve presente em várias prisões em flagrante efetuadas por elas sem a existência de situação de flagrância. Se ninguém é obrigado a se auto-incriminar, não há que se falar em falso testemunho quando uma testemunha se recusa a responder aquilo que lhe prejudica.

A forma encontrada pelas CPIs de compensação de seus déficits operacionais, materiais, técnicos etc., entretanto, não foi a melhor: em lugar de seguir o tempo da Justiça, seguem o tempo da mídia, que divulga tudo quanto está vendo ou ouvindo, em tempo real, ainda que seja uma tremenda inverdade. A espetacularização dos atos investigativos, que é fruto de uma conivência bem orquestrada entre a mídia e as CPIs, traduz condenações públicas de pessoas sem o devido processo legal, invade privacidades, aniquila imagens e reputações etc..

A midiatização das investigações deveria ser devidamente disciplinada, prevendo-se grave responsabilidade civil e penal para os abusos. Aliás, a própria delação premiada, inclusive porque também está midiatizada, está merecendo urgente atenção. Sabe-se o quanto é destrutiva uma delação inverídica que, por sinal, não é tão incomum sobretudo quanto envolve o poder central. Os políticos contam com incontáveis e inconfessáveis razões para fazerem delações não verdadeiras. Daí o cuidado que deve ter a Justiça para a aceitação delas.

De qualquer modo, é certo que esse "tempo da Justiça" (que conduz à prudência, equilíbrio etc.) não se corresponde em nada com o "tempo da mídia". As CPIs, na medida em que favorecem este último, em detrimento do primeiro, acabam por midiatizar sua própria investigação. Isso pode lhes render dividendos políticos (eleitoreiros), mas não é nada construtivo em termos de cidadania e dignidade.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente do PRO OMNIS-IELF (Rede Brasileira de Telensino – 1.ª do Brasil e da América Latina).

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