Clonagem humana: questões jurídicas e bioéticas

No momento em que o mundo presencia o fantástico seqüenciamento genômico e as primeiras ávidas tentativas de clonagem humana, a Humanidade inteira, ainda atônita, caminha para uma grande encruzilhada, que poderá levar a obscuros labirintos ou a horizontes iluminados.O conhecimento e a sabedoria desafiam as inteligências naturais e artificiais, sempre em busca do progresso científico.

A nova equação, porém, não pode atingir resultado fácil ou simplista demais, em se considerando que – muito ao contrário do que destacam alguns estudiosos afoitos – a coisificação do ser humano, que estaria sendo substituído por uma coisa humana, a um só tempo sujeito e objeto, causa e efeito, é inaceitável. A suprema garantia do direito à vida e à dignidade humana, respeitada a individualidade das pessoas, independentemente de quaisquer crenças religiosas, deve imperar sempre.

Por isso, penso que a comunidade científica mundial, sob as vistas atentas de bioeticistas e de juristas, pode e deve avançar nas suas céleres conquistas, livre de preconceitos, dogmas e tabus, desde que não afronte a pessoa humana, sujeito de direitos.A lei da vida, baseada no Direito Natural e no Direito Positivo, aí está e não cederá jamais, ainda que, quase sempre, alto o preço a pagar.

A problemática é muito mais vigorosa do que possa parecer, porque está em jogo a vida humana, desde a concepção até o nascimento e a morte, passando pelos estágios intermediários. Trata-se, por conseguinte, de uma criteriosa análise de complexa solução, acerca de células, tecidos e órgãos humanos, de embriões e fetos, de aborto, de eutanásia, da morte cerebral e dos transplantes, ao lado da comercialização macabra de órgãos, envolvendo tecnologia médica, bioquímica, farmacológica e genética dos chamados mass-média, onde milhões de dólares estão em jogo, na corrida pelas patentes, marcas, direitos autorais de um crescente mercado da indústria da vida.

Disso flui, evidentemente, posicionamentos bem distintos, porque a Bioética é, na sua própria essência, transdisciplinar e deve assimilar os velhos dogmas religiosos e as lições dos moralistas, sem que isso signifique tabus e retardos contra o progresso das ciências, naquilo que considero, doutrinariamente, a logosofia. De um lado, tem-se as seculares e sólidas restrições laicais lideradas pelo Vaticano, como um Estado-Membro da ONU, e pelos outros cristãos em geral, seguidos por judeus e islâmicos, cuja influência chega ao Século XXI e atinge alguns estamentos da comunidade científica-cultural mais ortodoxa. Não são poucos os profissionais que se recusam e que censuram a prática do abortamento, ainda que sejam de embriões supranumerários e descartáveis. O que dizer, quando se trate do feto como paciente, que o papa João Paulo II defende com intransigência?

Nesse permanente confronto de idéias, conceitos e opiniões, enfatizo a persistente tentativa de instituições católicas no sentido de incentivar as experiências científicas com células estaminais adultas, de modo a não se utilizar as células embrionárias para a cura de doenças ainda incuráveis, sob o pressuposto de que todo embrião é vida, desde a concepção, conforme disse Santo Agostinho, no século V.

Ressalte-se, também, que a retirada de células-tronco embrionárias implica na destruição do embrião durante sua primeira semana de vida, o que – lembre-se, – é tema dos mais polêmicos dentre os cientistas heterodoxos e agnósticos, para os quais o embrião só é vida a partir do décimo quarto dia da concepção, ou seja, no momento em que passa a ter sensibilidade neural, pela formação das células nervosas. Veja-se, aliás, a recente legislação aprovada pelo Parlamento da Inglaterra, admitindo as experiências com embriões humanos para fins de clonagem terapêutica, até cartorze dias da concepção in vivo ou in vitro. A geneticista Mayana Zatz, professora titular do Instituto de Biociência da USP, diferencia a clonagem reprodutiva da clonagem terapêutica e, sob o ponto de vista ético, aponta as vantagens e desvantagens de cada técnica, permeando sua argumentação com questionamentos e indagações no que tange à aplicação de testes genéticos e testes preditivos do genoma humano, quando enfrenta a ética na genética. É a cientista quem conclui: “Se por um lado a grande maioria dos cientistas e da população em geral é contra a realização da clonagem reprodutiva humana, de outro, a clonagem terapêutica, ou seja, o uso de embriões para fabricar tecidos e órgãos, poderá ser extremamente importante para salvar vidas”.

E a polêmica travada no campo biotecnocientífico se acentua ainda mais, quando se desafia aquelas situações persistentes, que o chamado Primeiro Mundo discute, e que os países subdesenvolvidos e os excluídos sequer imaginam. Questões básicas ensejam conclusões claras e seguras, sob pena de se bracejar no vazio ou cair num perigoso barril de pólvora, que poderá explodir a qualquer instante. A já consolidada Bioética ao lado do novo Biodireito, certamente, fixarão os pontos cardeais dessa grandiosa e duradoura discussão, de modo que, numa responsabilidade transgeracional, os transnacionais se conjuguem numa linguagem mais inteligente.

O já citado professor Volnei Garrafa, como presidente da Sociedade Brasileira de Bioética e do próximo VI Congresso Mundial de Bioética, da IAB, em Brasília, transformou sua conferência numa das mais concorridas aulas da 52.a.Reunião Anual da SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso das Ciências, que é presidida pela pesquisadora paranaense professora Glacy Zancan, da Universidade Federal do Paraná.

O combativo bioeticista falou sobre o aborto (cuja descriminalização, no Brasil, caminha a largos passos) e de outras situações persistentes – a exclusão social, o racismo, o abandono de crianças e idosos, a eutanásia, a comercialização de embriões e de órgãos e tecidos humanos – “que teimosamente persistem entre as sociedades, desde a mais remota antiguidade ” – enfatizando que Santo Agostinho, um dos maiores teólogos da Igreja Católica, disse que o feto só ganharia alma no 40.º dia de vida, quando homem, e no 80.º dia, se fosse mulher. Quanta discriminação sexista (!) retrucam milhões de feministas hoje espalhadas pelo Planeta Terra… Ele disse mais: “Sem ferir ou entrar no mérito das questões religiosas, o aborto encontra este tipo de discussão: até que momento o feto pode ser retirado sem que isso seja considerado um crime contra a vida, por parte de populações religiosas (?)”. Excluídos e famintos, da infância até a senilidade, no entanto, necessitam da proteção da Igreja e de outros segmentos privilegiados de uma sociedade, que considero oticamente obtusa e moralmente hipócrita, em tudo aquilo que cuide de direitos humanos, seja das maiorias ou das minorias, pouco importando-se com a quantidade, mas – isto sim – com a qualidade dos indivíduos, preferencialmente portadores de excelente carga genômica e que signifiquem alta renda per capita Fala-se de paternidade responsável. Porém, nada se faz para possibilitá-la.

Por último, vale frisar que, quanto à manipulação e o descarte de células-tronco, reprodutivas ou germinais e estaminais embrionárias e adultas, em face das sérias divergências ético-morais e religiosas, que se desdobram no meio científico-cultural, numa ação transdisciplinar, como gosta de destacar o pensador Nicolescu, afirmo que cabe ao jurista, como verdadeiro intérprete da lei, na ausência da norma escrita, ir em busca da melhor fundamentação epistemológica, e que seja a mais consentânea à dignidade da vida humana e a favor do bem-estar geral.

Penso que o princípio do risco-benefício, do bem maior e do mal menor, sob a mira do valioso princípio da precaução, deve prevalecer sempre como caudalosa fonte do Biodireito, observados seus amplos contornos jusfilosóficos. Só assim chegar-se-á ao almejado desiderato , na composição dos conflitos de interesses sobre as pesquisas e as experiências com organismos geneticamente modificados, com embriões supranumerários e crioconservados (ainda não incinerados e resultantes dos processos de reprodução assistida), além do uso científico e terapêutico das células estaminais embrionarias e adultas de seres humanos, para curar doenças.

No lúcido pensamento do ministro Milton Luiz Pereira, coordenador-geral da Justiça Federal, uma valiosa certeza: “O medo, as dúvidas, a curiosidade, o deslumbramento e a esperança são alguns dos sentimentos que acompanham a polêmica sobre o projeto científico. Em meio a esse turbilhão emocional, ganha significação o questionamento ético, buscando uma luz, uma direção; ou limites ?”, concluindo: “Como o debate científico encontra-se impregnado da descrença de que o homem possa chegar a qualquer conhecimento indubitável, resta-nos invocar o princípio da precaução no caso específico , estabelecendo que os cientistas nos assegurem que é absolutamente necessário à sociedade se arriscar numa empreitada com tamanhas implicações e conseqüências”.

E, agora, diante da iminente possibilidade de utilização das técnicas de clonação de células, tecidos e órgãos humanos, ainda que para fins terapêuticos, por força do incontrolado avanço da Engenharia Genética (ou Biociência) coadjuvada pela Medicina Materno-Fetal, inegavelmente, já é chegado o momento do legislador definir os novos institutos de Biodireito, evitando-se a perplexidade ainda maior ao intérprete e ao Poder Judiciário, que não deve deixar de decidir as questões postas ao controle jurisdicional.

Waterloo Marchesini Junior

é advogado e jornalista em Curitiba, autor do livro Clonagem humana e reprodução assistida, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Centro de Letras do Paraná. E.mail: wmjadvocacia@aol.com

Voltar ao topo