Carne viva para os ossos do ofício (2.ª parte)

Continuando a história do afogado, o personagem que havia ficado calado até aquele momento foi cobrado disso: ?Você não disse nada? – observou um deles. ?É verdade, eu não disse nada, continuei calado, não havia muito o que dizer, além do que já fora dito pelos outros. Na realidade, eu gostaria de saber o que foi que aconteceu com o homem que estava se afogando…?.

Por isso lancei a pergunta há pouco acerca do que realmente interessa no tratamento da literatura na escola. A literatura é a arte de contar histórias ou de compor as palavras de modos inusitados, elegantes? Tem sempre de ser escrita de modo diferente do que fazemos usualmente, senão não é literatura? As histórias têm de ser sobre feitos grandiosos? O ato de ler, em si, gera prazer, já que se fala tanto no prazer da leitura? Ou seriam os resultados da leitura que proporcionariam algum tipo de satisfação prazerosa? A resposta a essa questão, ainda que não se refira estritamente à literatura, mas à leitura de modo geral, é uma das questões que interessam, pois da resposta que dermos a ela virá o modo de lidar com a literatura na escola.

Mas voltemos ao trecho do romance reproduzido no início destas considerações. O significado do termo literatura para Lô(lita), ?dever escolar?, é o mesmo para a maioria dos jovens em todo o mundo (o contexto dessa personagem não é o brasileiro, nem o atual; e muitas outras obras mostram cenários muito parecidos com o nosso, caracterizado pela negação da literatura nos moldes que a escola quer impor). A literatura tornou-se, não o prazer que se atribui a ela, mas um dever de ofício. Temos todos, para sermos bons cidadãos e não conspurcarmos a sociedade, o dever de ser leitores de boa literatura. É essa imagem que a escola passa dos conteúdos que são ali ensinados. Não se trata mais de melhorar o indivíduo, mas o corpo social; daí o direito transformar-se em dever, e a dificuldade em crime. Note-se que, pelo trecho citado, não se pode dizer que a personagem não era leitora, apenas que, durante as férias, ou seja, durante o período em que não é preciso realizar trabalho formal, ela entregava-se a atividades não laborais. Aí, sim, por prazer (mesmo que dê trabalho!).

Dito isso, vamos tentar projetar um cenário para a abordagem da literatura em sala de aula. Basta simplesmente (com toda a complexidade que esse termo esconde) fornecer aos alunos o contato com livros, para que eles leiam sem nenhum compromisso, sem ter de responder a questionários ou emitir opiniões sobre a obra lida? Isso já foi feito e os resultados foram pouco satisfatórios. Afinal, continua sendo um ambiente artificial, no qual a própria disponibilização do tempo para leitura torna-se um elemento moralmente constrangedor.

É nesse momento que vejo a pertinência da resposta que sugeri acima sobre o que de fato causa prazer com a leitura: os resultados que obtemos nesse processo. Por isso tenho defendido uma postura didática em que, ao invés de se explicar conteúdos na escola, nós criemos situações de uso dos conteúdos que queremos que sejam assimilados pelos alunos. As explicações têm um momento certo para ocorrer e precisam ser requisitadas pelo processo, sendo fornecidas na medida em que permitem que o processo não sofra solução de continuidade. Ninguém lê por ler. Lê para atingir algum objetivo. O fato de que há pessoas que buscam na literatura apenas o prazer de uma história não nos permite supor, como têm feito os educadores, que todos busquem prazer na literatura. Há outros meios de preenchermos de histórias o nosso imaginário. Por isso uma das questões que propus que ocupem nossas reflexões (não apenas dos teóricos da literatura enquanto campo do saber) é sobre o que constitui de fato a literatura. Há muitas pessoas que leram muito poucos romances ao longo de sua vida, mas conseguem prender a atenção de uma platéia com os relatos prosaicos dessa mesma vida sem ?literatura?. Tal compreensão de literatura, qual metodologia de trabalho com ela na escola.

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