A relação dos crimes e das penas deve estar inteiramente contida no Código Penal ou o sistema deverá manter as leis especiais?

Discute-se a utilidade/necessidade da total definição dos crimes e respectivas penas unicamente no Código Penal, em contraposição à manutenção da legislação penal especial. Porém, podemos discorrer primeiramente sobre outra necessidade no que tange à capitulação dos crimes e das penas: A readequação dos tipos penais à sociedade vigente. Explica-se: Antes de se pensar em apenas unificar os tipos penais em um só instrumento, deve-se levar em conta os avanços de nossa sociedade, de 1940 para cá, e pensar-se em uma reformulação dos conceitos de algumas condutas tidas ainda como ilícitas, mas que na realidade estão sendo praticadas freqüentemente, já fazendo parte da consciência social como algo que já não agride significativamente bens jurídicos tutelados pelo direito penal.

A principal função de uma norma jurídica é impedir conflitos interpessoais, visando regular de forma harmônica os interesses da coletividade com as prerrogativas do indivíduo. Nesta linha de raciocínio, pode-se dizer que enquanto a conduta de alguém não causar lesão ou, ao menos, perigo de lesão a um bem juridicamente relevante, o direito deve respeitar a liberdade do indivíduo, sendo desnecessária a sua intervenção. Em contrapartida, com a evolução célere da sociedade, nos deparamos com o aumento abusivo das normas, sem excetuar-se as normas penais, o que traz como conseqüência, cada vez mais acentuada, o seu descumprimento. O Estado, titular do jus puniendi, encontra-se enfraquecido, sem condições de fazer cumprir as suas leis.

Muitas das normas penais encontram-se destituídas de sua objetividade fundamental, qual seja, a proteção dos bens fundamentais, indispensáveis à vida em sociedade. Podemos dizer que, para muitas conditas tipificadas pelo Código Penal, já existem outros mecanismos capazes e eficientes para punição do autor de tais condutas, sem que se venha a retirar a sua liberdade, levando-se em consideração o caráter fragmentário do direito penal, caráter este corolário dos princípios da intervenção mínima e da reserva legal.

Exemplifica-se: temos normas incriminadoras destinadas a simples inadimplentes de tributos, os quais podem ser penalizados de uma maior forma em outras esferas do direito, deixando de ser o direito penal um simples “cobrador de impostos”. Tipos como o de “assédio sexual”, recentemente incluído em nossa legislação penal possuem condições de sofrer outras formas de punição pelo direito civil ou trabalhista, por exemplo. Sem se deixar de falar dos crimes de adultério, bigamia, da contravenção do “jogo-do-bicho”….

Se a lei penal, dotada de cunho repressivo, deve visar a proteção dos bens jurídicos fundamentais da sociedade, seria um paradoxo incumbir-lhe de sancionar condutas que atinjam bens de menor valor, que podem perfeita e efetivamente ser protegidos por outros ramos do direito.

Não se discute o caráter negativo das prisões no País. Não têm o condão de recuperar criminosos nem condições de evitar o cometimento de novos crimes, não regeneram nem ressocializam; pervertem, corrompem, aviltam, “seletivamente”, os pobres e os desassistidos.

Parece ser equivocada a concepção de que se faz necessária a edição de novas leis penais, mais severas, mais abrangentes, para resolver o problema da criminalidade. Devem ser utilizados meios alternativos de controle social das condutas ilícitas. A prisão deve ser utilizada como ultima ratio, somente devendo ser segregados os mais perigosos. Podemos perceber um passo neste sentido com a implantação das penas alternativas, como formas outras de punição ao crime que não a segregação física do agente.

Assim, cremos que a ordem jurídico-penal carece de reformulação: descriminalização de algumas condutas, isto é, retirar das leis penais as infrações que não mais necessitam ser tratadas como crimes; despenalização de outras, ou seja, aplicação de sanções não de cunho segregador para aquelas condutas que ainda necessitam estar contidas na legislação penal, deixando para o direito penal segregador apenas aqueles comportamentos que tenham efetivamente lesionado bens jurídicos fundamentais.

Comportamentos outros podem deixar de ser tratados como crimes para merecer severas punições em outros “microssistemas” do direito, como na esfera civil ou administrativa. Logicamente, restarão comportamentos que necessitarão da aplicação de penas privativas de liberdade, cujas descrições típicas devem estar devidamente relacionadas em um instrumento jurídico codificado. Na medida em que for surgindo a necessidade da definição de um novo tipo penal, deve o mesmo ser incluído no Código Penal como uma nova espécie.

O atual “emaranhado” de leis penais dificulta até mesmo a sua operacionalização pelo profissional do direito, seja ele o delegado de polícia, o promotor de justiça, o juiz ou o advogado. Atualmente, em casos peculiares, é praticamente impossível efetuar-se o enquadramento legal de uma conduta típica sem ter-se em mãos, além do Código Penal, inúmeras leis penais especiais esparsas.

Pode-se também incluir a dificuldade da efetiva publicidade da lei penal. É também difícil o conhecimento da lei pelo cidadão, pois a lei, em seu amplo sentido, não está direcionada apenas para o operador do Direito. Como o desconhecimento da lei é inescusável, em contrapartida devem existir meios eficientes para que se possa ter seu conhecimento efetivo.

A tarefa do legislador deve restringir-se aos limites do necessário à realização da justiça e do suficiente para sancionamento das condutas realmente puníveis pelo direito penal, devendo subordinar-se ao princípio da intervenção mínima. Outras alternativas surgirão com a aplicação de uma inteligente e efetiva política criminal.

Gisele Mara Durigan é analista judiciário da Justiça Federal do Paraná, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba, pós-graduada em Direito Penal e Direito Processual Penal no Centro Universitário Positivo – Unicenp.

Voltar ao topo