A Reforma do Código de Processo Penal ­Provas (IV)

Tal princípio está previsto expressamente no art. 5.º, caput da Constituição Federal e “significa a proibição, para o legislador ordinário, de discriminações arbitrárias: impõe que a situações iguais corresponda um tratamento igual, do mesmo modo que a situações diferentes deve corresponder um tratamento diferenciado.” Segundo ainda Mariângela Gama de Magalhães Gomes, a igualdade “ordena ao legislador que preveja com as mesmas conseqüências jurídicas os fatos que em linha de princípio sejam comparáveis, e lhe permite realizar diferenciações apenas para as hipóteses em que exista uma causa objetiva pois caso não se verifiquem motivos desta espécie, haverá diferenciações arbitrárias”(26).

Para Ignacio Ara Pinilla, “la preconizada igualdad de todos frente a la ley (…) ha venido evolucionando en un sentido cada vez más contenutista, comprendiédose paulatinamente como interdicción de discriminaciones, o, por lo menos, como interdicción de discriminaciones injustificadas”(27).

Como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, “há ofensa ao preceito constitucional da isonomia quando a norma singulariza atual e definitivamente um destinatário determinado, ao invés de abranger uma categoria de pessoas, ou uma pessoa futura e indeterminada”(28).

E se a vítima já faleceu? Entendemos que subsiste a obrigação de comunicação aos seus sucessores em conformidade com a ordem estabelecida nos arts. 31 e 36 do Código de Processo Penal. Parece-nos que somente assim poderemos preservar a mens legislatoris.

Estabelece o § 4.º que, “antes do início da audiência e durante a sua realização, será reservado espaço separado para o ofendido”. Esta medida é tão apropriada quanto de difícil operacionalização na prática, conhecendo-se a estrutura dos nossos fóruns criminais.

Já o § 5.º tem seguinte redação: “Se o juiz entender necessário, poderá encaminhar o ofendido para atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde, a expensas do ofensor ou do Estado.”

Questão que não foi esclarecida pela lei é como se pode obrigar o ofensor a custear, ainda que tenha condições econômicas e financeiras, este atendimento multidisciplinar à vítima, especialmente antes de uma sentença condenatória.

Aliás, mesmo após a sentença condenatória. Observa-se que a nova redação dada ao art. 387, IV (Lei n.º 11.719/08) refere-se apenas à fixação de um valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, o que não implica em custear, por exemplo, um tratamento psicossocial que pode levar até anos…

Por fim, o último parágrafo determina que o Juiz de Direito deve tomar “as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação”. Tais medidas, se efetivamente forem levadas a efeito, serão de grande valia e utilidade, principalmente quando se trata de ofendido em crimes contra os costumes e em relação a crianças e adolescentes vítimas. Neste sentido, veja-se o art. 5.º, LX da Constituição Federal.

Não esqueçamos que no Brasil já temos uma lei específica a respeito do assunto, a Lei n.º 9.807/99, regulamentada pelo Decreto n.º 3.518/00, que estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, além de instituir o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas, dispondo, ainda, sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal. Para a implementação deste Programa, os Estados(29), a União e o Distrito Federal poderão celebrar convênios com entidades não-governamentais, sob a supervisão do Ministério da Justiça.

A nova lei alterou também alguns dispositivos do Código de Processo Penal que tratam sobre a prova testemunhal(30). Assim, ao art. 210, cujo caput não foi alterado, acrescentou-se um parágrafo único nos seguintes termos:

“Antes do início da audiência e durante a sua realização, serão reservados espaços separados para a garantia da incomunicabilidade das testemunhas.” Repetimos o que afirmamos acima: esta medida é tão apropriada quanto de difícil operacionalização na prática, conhecendo-se a estrutura dos nossos fóruns criminais.

A novel redação do art. 212 estabelece que “as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz àquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.” Evidentemente que “sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.” (parágrafo único).

Aqui, abandonando o nosso sistema tradicional de ouvida das testemunhas, que era o presidencialista, adotou-se o sistema da cross examination. A propósito, veja-se a lição de Fredie Didier Jr.: “No direito anglo-americano, a inquirição das testemunhas é feita pelo advogado diretamente à testemunha. A direct-examination (inquirição pela parte que arrolou a testemunha) e a cross-examination (inquirição pela parte contrária) são feitas sem a intermediação do magistrado, a quem cabe principalmente controlar a regularidade da inquirição (EUA, Federal Rules of Evidence, rule n.º 611, “a”). Permite-se que o magistrado formule perguntas com o objetivo de integrar a as perguntas formuladas pelas partes e esclarecer pontos duvidosos do depoimento trata-se de poder escassamente exercitado, porém. O papel do magistrado é, portanto, bem diverso (e mais restrito) do que aquele para ele previsto no direito processual brasileiro: no direito anglo-americano, o magistrado é coadjuvante e as partes, por seus advogados, os grandes protagonistas. Esse modo de produção da prova é manifestação da ideologia liberal que orienta o processo da common law, principalmente o processo estadunidense, de caráter marcadamente adversarial (dispositivo), em que deve prevalecer a habilidade das partes sem a interferência do magistrado. Segundo Michele Taruffo, trata-se de manifestação de uma concepção ´esportiva” (competitiva) da justiça, de modo a exprimir um dos valores fundamentais do processo da common law: o combate individual como método processual.” (Curso de Direito Processual Civil, Vol. II, Salvador: Editora JusPodivum, 2007).

Criticando o procedimento presidencialista, afirma o Professor René Ariel Dotti que esta “regra sexagenária, não é o melhor caminho para apurar a verdade material, objetivo essencial do processo criminal. E são vários os inconvenientes. O primeiro deles é o tempo que a testemunha dispõe para mentir ou omitir a verdade se quiser trair o compromisso legal de “dizer a verdade sobre o que souber e lhe for perguntado” (CPP, art. 203). O segundo é a intervenção do Juiz entre a pergunta da parte e a resposta com prejuízo para o esclarecimento de detalhe sobre o fato típico ou conduta de réu ou vítima.O terceiro é a perda de objetividade que é um corolário lógico do princípio de economia processual. O quarto é a falsa impressão causada à testemunha acerca do papel de cada um dos protagonistas da audiência, parecendo ao leigo que os procuradores exercem atividade menor. O cross-examination é o método da pergunta (ou repergunta) direta à testemunha, réu ou vítima, utilizado em países como a Inglaterra e os Estados Unidos, onde as experiências sobre a colheita da prova são bem sucedidas”(31).

Alterou-se, sutilmente e para melhor, o art. 217, estabelecendo que “se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor.” Neste caso, segundo o parágrafo único acrescentado, a adoção de tais medidas “deverá constar do termo, assim como os motivos que a determinaram.”

O antigo art. 217 não previa esta medida (excepcional, diga-se de passagem) a ser aplicada em favor também do ofendido.

Permite-se a oitiva das testemunhas e do ofendido por videoconferência, mas não o interrogatório do acusado. Aliás, em sessão realizada no dia 14 de agosto de 2007, por unanimidade, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal considerou que interrogatório realizado por meio de videoconferência viola os princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa. Dos cinco ministros que integram a Turma, quatro participaram da votação. Somente o Ministro Joaquim Barbosa estava ausente. A decisão foi tomada no julgamento do Habeas Corpus n.º 88914 concedido em favor de um condenado a mais de 14 anos de prisão por extorsão mediante seqüestro e roubo. Os Ministros anularam, a partir do interrogatório, o processo-crime aberto contra ele na 30.ª Vara Criminal do Foro Central de São Paulo ao julgarem ilegal o ato, realizado por meio de videoconferência. O interrogatório, determinado por juiz de primeiro grau, foi em 2002. O Ministro Cezar Peluso relatou o caso e afirmou que “a adoção da videoconferência leva à perda de substância do próprio fundamento do processo penal” e torna a atividade judiciária “mecânica e insensível”. Segundo ele, o interrogatório é o momento em que o acusado exerce seu direito de autodefesa. Ele esclareceu que países como Itália, França e Espanha utilizam a videoconferência, mas com previsão legal e só em circunstâncias limitadas e por meio de decisão devidamente fundamentada. Ao contrário, no Brasil ainda não há lei que regulamente o interrogatório por videoconferência. “E, suposto a houvesse, a decisão de fazê-lo não poderia deixar de ser suficientemente motivada, com demonstração plena da sua excepcional necessidade no caso concreto”, afirmou Peluso. Segundo o Ministro, no caso concreto, o acusado sequer foi citado com antecedência para o interrogatório, apenas instado a comparecer, e o juiz em nenhum momento fundamentou o motivo de o interrogatório ser realizado por meio de videoconferência. Os argumentos em favor da videoconferência, que traria maior celeridade, redução de custos e segurança aos procedimentos judiciais, foram descartados pelo ministro. “Não posso deixar de advertir que, quando a política criminal é promovida à custa de redução das garantias individuais, se condena ao fracasso mais retumbante.” O Presidente da Turma, Ministro Celso de Mello, afirmou que a decisão “representa um marco importante na reafirmação de direitos básicos que assistem a qualquer acusado em juízo penal”. Para ele, o direito de presença real do acusado durante o interrogatório e em outros atos da instrução processual tem de ser preservado pelo Poder Judiciário. O Ministro Eros Grau também acompanhou o voto de Cezar Peluso. Gilmar Mendes não chegou a acolher os argumentos de violação constitucional apresentados por Peluso. Ele disse que só o fato de não haver lei que autorize a realização de videoconferência, por si só, já revela a ilegalidade do procedimento. “No momento, basta-me esse fundamento claro e inequívoco.” Fonte: STF.

Notas:

(26)     O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 67.

(27)     “Reflexiones sobre el significado del principio constitucional de igualdad”, artigo que compõe a obra coletiva denominada “El Principio de Igualdad”, coordenada por Luis García San Miguel, Madri: Dykinson, 2000, p. 206.

(28)     Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, São Paulo: Malheiros, 1999, 3.ª ed., 6.ª tiragem, p. 47.

(29)     Veja em nossa obra já referida, artigo sobre como funciona este programa no Estado da Bahia e a sua ligação com o Ministério Público Estadual.

(30)     Sobre todos os aspectos da prova testemunhal, mais uma vez remetemos o leitor ao que escrevemos em nosso Direito Processual Penal, Salvador: Editora JusPodivm, 2007.

(31)     “Cross-examination e a simplificação das audiências” (O Estado do Paraná, 11/11/2007)

Rômulo de Andrade Moreira é procurador de Justiça na Bahia. Professor de Direito
Processual Penal da Universidade Salvador-Unifacs, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Autor das obras “Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (em co-autoria) e “Juizados Especiais Criminais” Editora JusPodivm, 2008, além de organizador e coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, Editora JusPodivm, 2008.