A primeira emenda

O ministro Gilberto Gil, da Cultura, dedo em riste, saiu em defesa do presidente a que serve. Não há – assegura – por que duvidar do caráter democrático do governo. E governo democrático é diferente de governo ditatorial. Não explica a diferença, mas ele mesmo, envolvido em querelas de vezo tido como autoritário no âmbito de projetos de sua pasta, assegura não acreditar que o governo Lula vá acabar com a democracia. Até porque, se assim for, “eu não vou deixar”.

Se pode tanto, valha-nos o Gil de velhas guerras. O tom da defesa dá mais ou menos idéia do clima que se abateu sobre o Planalto. Temos que Gil é homem calmo, das artes e da música. Mas em meio à tempestade também reage. A verdade é que esse governo democrático foi flagrado em meio a um processo de – como se diz por aí – “recaída autoritária”. Recaída não seria bem o termo. Mas vá lá.

O que salta aos olhos é o fato de que se em vigor estivesse o decreto da mordaça sobre o funcionalismo público, por certo sequer estaríamos sabendo que o governo prepara, em algum canto escuro, aquela que seria a mais extensa e violenta censura imposta aos dependentes do Estado. Foi graças a alguém que “deu com a língua nos dentes” que hoje estamos de plantão e de prontidão para evitar que o mal aconteça. Ou seja reduzido a termos, já que a orientação informal permanece. Igualmente foi porque alguém se adiantou ao redator oficial de decretos que ficamos sabendo com a antecipação necessária das vontades governamentais de atropelar os estreitos caminhos da Justiça no caso da proteção das liberdades e sigilos.

Gilberto, por exemplo, nega que o governo pretenda estabelecer o dirigismo cultural. Mas não é a primeira vez que isso é tentado. Não faz muito, pretendia o Planalto condicionar a verba da famosa renúncia fiscal a trabalhos – digamos assim – que aproveitassem aos excluídos ou pertencentes às quotas estabelecidas de combate aos… preconceitos. Também ali alguém deu com a língua nos dentes e o recuo foi incontinenti.

Mais ou menos como agora. Até o ministro da Justiça, o experimentado jurista Márcio Thomaz Bastos, vinha anuindo com algumas iniciativas no campo dos controles quando, de repente, percebeu que as coisas já estavam passando dos limites. Felizmente veio a público para rejeitar a censura arquitetada contra servidores que, na verdade, mira nesse “denuncismo” da imprensa que – graças à vigilância anônima de muitos, ainda é livre. Na sua esteira, também José Genoino, o presidente do partido que está no poder, levantou a mão e admitiu que “temos que discutir melhor esta questão”. Deve-se lembrar a Genoino que, também aqui, não é a primeira vez que o governo que leva a marca da estrela procura “democraticar” o trabalho da imprensa, atendendo naturalmente à sua predestinada (e estreita?) ótica.

No caso do decreto que pretende, por todos os órgãos do governo envolvidos com fiscalização e/ou controle, a partilha das informações decorrentes da quebra do sigilo autorizado a alguém pela Justiça, mais que a nobre justificação apresentada (o combate ao narcotráfico, ao crime organizado, à sonegação e à corrupção), fica a pergunta sobre se o uso de tais informações por tanta gente não seria para o estabelecimento de redes de proteção, blindagem ou escudos do tipo que acabamos de ver em alguns casos recentes ou, mesmo, para alimentar a fogueira das chantagens e mau uso político (os famosos dossiês, por exemplo) dessas mesmas informações. A proposta é claro acinte às funções da Justiça que, quando autoriza a quebra de algum sigilo, o faz com destino certo, para uso apenas e exclusivamente naquela apuração.

O que está faltando no Brasil, isso sim, é uma pequena frase que torna mundialmente famosa a Primeira Emenda da Constituição norte-americana. Ela diz, com outras palavras, obviamente, que quando se trata da palavra ou da imprensa é proibido proibir. Ou, mesmo, tentar proibir.

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