A novela que não passou

Diz-se que um homem deve ser julgado pelo seu legado. Essa foi a tônica da despedida de Roberto Marinho, martelada de forma insistente pela TV Globo. A maior rede de TV do País, e a quarta maior do mundo, preferiu pecar pelo excesso, ao traçar um perfil do seu fundador e enaltecer seus feitos. Nos textos emocionados de despedida, intercalados por imagens de arquivo de Roberto Marinho, a Globo disse mais de uma vez que, durante a ditadura militar, o patriarca teria afirmado: “Dos meus comunistas cuido eu”, como forma de evitar que os jornalistas fossem punidos pelos militares, por contrariar ordens da censura.

É verdade que o dr. Roberto de fato protegeu seus funcionários. Mas a frase solta dá a falsa impressão que ele peitou a ditadura, o que não procede com a realidade.

A TV Globo nasceu justamente um ano após o golpe militar, ou seja, em 1965. Os militares deram sinal verde para Roberto Marinho criar uma rede de tevê no País, porque não confiavam em Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados e fundador da TV Tupi. No dizer dos milicos, “Chatô”, o pioneiro da TV no Brasil, era um aventureiro e deveria se desbancado.

Roberto Marinho, então, firmou uma parceria com o grupo americano Time-Life, o que lhe rendeu a cifra de US$ 4 milhões, e criou a Globo. Não se contesta aqui o tino empresarial do dr. Roberto, um empresário que aos 60 anos aceitou o desafio de criar uma rede de tevê e a transformou na quarta maior do mundo. Esse é um feito formidável, principalmente em se tratando de Brasil, um País que já mudou nove vezes de moeda e tem uma das maiores cargas tributárias do mundo.

Apesar do gigantismo, a Globo em momento algum confrontou o regime de chumbo. A primeira vez que a rede utilizou o termo “ditadura militar”, foi em 1985. Outra mancada histórica da emissora foi não cobrir o comício das Diretas-Já em 1984, ignorando o clamor de 200 mil pessoas pela democracia na Praça da Sé. O evento acabou sendo divulgado como parte das festividades do aniversário de São Paulo.

Mesmo depois que os militares saíram de cena, o poder sempre esteve muito próximo da Rede Globo. Quem não lembra quando a emissora abraçou a candidatura de Fernando Collor de Mello, sendo fator decisivo para alçá-lo ao poder? Consta que o dono da Globo ficou encantado quando conheceu Collor, chamou os diretores de jornalismo numa reunião e determinou: “Não quero nada contra esse moço nos noticiários”.

O final desse processo foi a polêmica edição do debate dos presidenciáveis no segundo turno das eleições de 1989, beneficiando claramente Collor em detrimento do agora presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Collor caiu tanto nas graças de Marinho, que ele aceitou até que o então presidente indicasse o novo chefe do jornalismo da emissora. O agraciado na época foi Alberico Souza Cruz, que destronou o competente Armando Nogueira.

Mais tarde, alarmado com as denúncias de Pedro Collor, Marinho ordenou que a emissora estimulasse a população a protestar, criando uma onda que acabou varrendo Collor do poder. Chegou a mandar reprisar a novela “Que Rei Sou Eu?” para ampliar a correlação a vida imita a arte.

Claro, são apenas fragmentos de capítulos da história desse império da comunicação, que se entrelaçam com a história do Brasil. Mas essa é uma novela que a Globo teima em não pôr no ar.

Miguel de Andrade

(economia@pron.com.br) é editor de Economia da Tribuna do Paraná.

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