A inversão do ônus da prova no processo de execução penal

Todos concordam que nosso sistema penitenciário está falido, não reeduca pessoa alguma e é considerado a universidade do crime. Inúmeras reformas são necessárias, mas neste artigo quero me referir a uma delas, que não importa em construção de novas unidades ou consideráveis gastos para o Poder Executivo e pode solucionar a maioria dos problemas, evitando principalmente as rebeliões. É a reforma constitucional relacionada com a progressão das penas, livramento condicional e demais benefícios.

A liberdade é um direito fundamental inviolável, segundo dispõe o “caput” do art. 5.º da CF, e como tal só pode ser reduzida nos casos estritamente legais. A restrição indevida da liberdade de alguém, em qualquer grau, pelo Estado, é ato ilícito que enseja uma reparação indenizatória nos termos do inciso LXXV do mencionado dispositivo constitucional, que reza: “O Estado indenizará o … que ficar preso além do tempo fixado na sentença”. Aqui está uma das garantias do direito de liberdade; garantia fundamental, que como tal deve ser interpretada, de maneira que se lhe dê a maior eficácia possível, como ensinam os mestres constitucionalistas. Dessa forma tal dispositivo alcança não só o tempo da pena, mas também a forma como ela é cumprida, o que significa dizer que se a pessoa tinha direito a progressão de regime ou a livramento condicional e não recebeu o benefício, permanecendo a cumprir a pena em regime fechado, está sofrendo uma indevida restrição de sua liberdade, merecendo ser indenizada.

Basta uma visita a qualquer das instituições do nosso sistema penitenciário para se verificar quantos presos estão reclamando por falta de concessão dos benefícios previstos em lei; e se enganam aqueles que pensam que os condenados são leigos no assunto; ao contrário, são `doutores’; sabem exatamente quais os direitos que possuem, bem como estão cientes da negligência e deficiência dos serviços estatais para atendê-los.

A prometida assistência jurídica integral e gratuita prevista no inciso LXXIV do citado artigo, ainda, apesar de todos os esforços do corpo jurídico das penitenciárias, é um mero protocolo de intenções. As dificuldades para a elaboração do exame criminológico são de toda ordem; há contínua falta de profissionais; a espera é angustiante.

Ora, se a pessoa sabe que já tem direito a um benefício que torna mais leve o cumprimento de sua pena, ou mesmo tem direito ao livramento condicional, e não recebe esses benefícios por falta de estrutura do Estado, é evidente que se torna uma presa fácil para participar de uma rebelião. Não basta reprimir-se uma rebelião, é necessário evitar que ela aconteça.

Recentemente recebi a visita de um colega da magistratura carioca – dr. Wagner Cinelli de Paula Freitas – que concluiu seu mestrado em criminologia na Inglaterra, e dele ouvi que naquele país o juiz quando profere uma sentença penal condenatória já coloca na mesma a data em que o réu deverá receber o benefício da progressão de regime ou do livramento condicional, cabendo ao Estado demonstrar que, chegada a data do benefício, o réu não o merece. Como se vê, inverte-se o ônus da prova; não é o réu que deve demonstrar que merece o benefício, mas sim ao Estado é que cabe comprovar que o condenado não merece usufruir do benefício que a lei prevê.

A adoção desse procedimento, que se adapta perfeitamente ao nosso sistema constitucional, resolveria inúmeros problemas e faria com que o Estado se estruturasse devidamente, pois o réu só não seria beneficiado na data prevista na sentença se o Estado comprovasse, principalmente com o exame criminológico, o qual deveria ser providenciado necessariamente antes da data fixada para o início do benefício, que o réu deveria permanecer no mesmo regime de cumprimento de pena.

A realização do exame criminológico é um serviço público do qual o detento é o consumidor e consumidor hipossuficiente, devendo portanto se beneficiar da inversão do ônus da prova prevista no art. 6.º, VIII, da Lei 8.078, o qual deve ser aplicado por analogia, nos termos do art. 7.º, e pela interpretação extensiva do art. 29, ambos do mesmo diploma.

O estudo do direito estrangeiro nos faz enxergar potencialidades de nosso sistema que normalmente não vemos.

A contextualização do art. 5.º, `caput’ e incisos LXXIV e LXXV, com o 37, `caput’ quando trata do dever de eficiência da administração pública e § 6.º, que fala sobre a responsabilidade objetiva do Estado, bem como com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, inserido no art. 1.º, III, da Constituição Federal, aliada com a integração dos princípios do Código do Consumidor, dão base a essa reforma de inversão do ônus da prova para que o condenado possa usufruir dos benefícios da progressão de regime de pena e livramento condicional sempre que o Estado não comprovar, tempestivamente, que o mesmo não os merece.

O ideal é que a data dos benefícios constasse da sentença, mas isso não é necessário, porque o prazo é previsto em lei.

Vale a pena tentar, porque pior do que está é difícil ficar.

Jorge de Oliveira Vargas

é juiz do Juizado Especial Criminal de Curitiba e doutorando pela UFPR.

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