A invenção de um governo

Os pactos são fórmulas de entendimento social para a superação de crises. Essas crises são de natureza muito diversa: elas podem ser políticas, econômicas ou sociais. Os governos lançam mão dessas fórmulas (em essência: acordos básicos entre trabalhadores, empresários e governo) quando o sistema político não é mais capaz de fazer frente aos desafios nacionais. Isso ocorre ou porque há um impasse que destrói a capacidade de representação do sistema (crise política), ou porque as instituições políticas são muito conservadoras e pouco afeitas às reformas julgadas necessárias (crise social), ou porque é preciso conter as reivindicações sociais em limites toleráveis (crise econômica).

No Brasil, as administrações que buscaram essa forma de entendimento não tiveram bons resultados. Os casos do governo Figueiredo (em sua fase final), do governo João Goulart (depois do plebiscito) e do governo Sarney (após a calamidade do Plano Cruzado) ilustram, respectivamente, o insucesso de um pacto social salvacionista cujo fim último é a “governabilidade”.

Há, contudo, um sentido menos dramático, digamos assim, nos pactos sociais. No plano internacional, vários governos, em sua fase inicial, inauguraram uma détente com os interesses politicamente organizados. Isso pretendia garantir uma legitimidade maior e um apoio social mais consistente do que aquele resultante da votação eleitoral, aumentando assim a margem de manobra do Executivo.

A proposta de pacto social feita pelo presidente eleito pertence a esse segundo tipo e possui, a meu ver, duas virtudes importantes e uma vantagem política imediata. A vantagem política já foi, aliás, amplamente sugerida pelas próprias lideranças petistas: o fórum do pacto social deverá ser uma instância fundamental para legitimar as propostas de reforma (tributária, previdenciária, etc.) do novo governo e, por essa via, influir decisivamente sobre as inclinações dos congressistas nas votações da Câmara e do Senado.

Mas é em outro lugar que se deve ler sua novidade (e suas virtudes). Ele sinaliza uma mudança importante no estilo de governo: do tecnocrático ao democrático. Por quê?

O pacto social petista pretende permitir, de um lado, a reativação de um canal não-institucional (tais como são os partidos, o parlamento) de participação, ampliando assim a capacidade de influência de uma parte da sociedade organizada sobre a agenda do governo. Essa influência deve se concretizar em dois níveis: seja constrangendo a “liberdade administrativa” desfrutada pela burocracia, seja aumentando sua responsabilidade social. Por outro lado, a existência de um grande fórum para discussão dos “problemas nacionais” (esse é, na prática, o sentido último do pacto social) deve exigir a explicitação dos interesses em disputa que agora, mais transparentes, têm de ingressar à arena política para negociar “perdas e ganhos”. O que se desconta em “agilidade administrativa”, se acrescenta em educação política: a sociedade será então posta frente a frente às vantagens acumuladas por corporações, grupos, facções e classes e terá de optar (ou não) por determinadas reformas com mais ciência das suas conseqüências.

Mas o pacto não é um remédio contra todos os males. De saída é preciso sublinhar que nem todos os atores sociais estarão representados no fórum. Trata-se da tradução política dos setores organizados da sociedade brasileira, ficando de fora o “mercado informal”, as pessoas abaixo da linha de pobreza, os desempregados, entre outros. E isso por uma razão básica: para que determinados interesses sociais cheguem à arena política o pré-requisito é a organização. A capacidade política dos atores sociais converterem reivindicações (mais empregos, mais salários, mais comida, etc.) em iniciativas e, com isso, alcançarem a condição de acesso ao sistema, é a detenção de recursos políticos específicos: o primeiro deles é a capacidade de ser ouvido. O fórum, entretanto, não é dos “excluídos”. Essa obviedade toca, a meu ver, num ponto decisivo do processo de construção democrática no Brasil. A redução do autoritarismo (em sentido amplo) será resultado direto do grau de liberdade para a articulação de interesses da maioria.

Adriano Nervo Codato

é professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná (UFPR), editor da Revista de Sociologia e Política e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira da UFPR. (
http://www.revistasociologiaepolitica.org.br/)

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