Vida de mãe de santo

Autobiografia da mãe de um líder espiritual reverenciado em todo o mundo, Dalai Lama, Meu Filho (Ediouro, 208 páginas, R$ 29) deveria ser neutro como convém a um livro budista e politicamente isento como se espera de uma obra do gênero.

No entanto, a vida de Diki Tsering, também conhecida como a ?avó do Tibete?, foi dura demais para que a camponesa, destinada a ser a mãe do décimo quarto Dalai Lama, perdesse a oportunidade de criticar duramente uma sociedade de castas que discrimina as mulheres. Tinha como meta criar filhos e ser uma boa esposa. Iletrada, transformou-se na mãe do Buda reencarnado. Queria viver para sempre numa aldeia do Tibete. Teve de fugir com a família e morrer no exílio. Enfim, nada do que planejou deu certo. Exceto Sua Santidade, o Dalai Lama, seu maior orgulho.

Publicado no exterior pelo sobrinho do lama, Khedroob Thondup, oficial do Parlamento-em-exílio do Tibete, a biografia de Diki Tsering é uma espécie de As Boas Mulheres da China do mundo ancestral. O que o livro da moderna chinesa Xinran fez por suas compatriotas, vítimas de uma cultura patriarcal e repressora, o da mãe do Dalai Lama faz pelas mulheres tibetanas, oprimidas pelo mesmo poder arcaico.

Mesmo assim, a avó do Tibete considerava-se uma mulher ?tradicional?. Anacrônica, jamais. Contrariando o espírito do site oficial do governo do Tibete no Exílio, que passa uma imagem pasteurizada da sua história para o mundo, Diki Tsering afirma, no livro, que as mulheres tibetanas nunca tiveram seus direitos reconhecidos. E mais: muitas cometeram suicídio pressionadas pelas famílias dos respectivos maridos ou foram brutalmente assassinadas por conduta imprópria.

Aterrorizadas por superstições ou perseguidas por espíritos malignos, parindo solitariamente em estábulos ou trabalhando como escravas para as famílias dos maridos, as mulheres tibetanas do tempo da mãe do Dalai Lama só não comeram o pão que o diabo amassou porque morreram antes – de desnutrição.

A vida na província de Amdo não era fácil. O livro informa que uma mulher adúltera podia ser simplesmente eliminada por familiares do marido a pedido do homem traído. Viúvas eram consideradas socialmente mortas nos três anos subseqüentes à morte do patriarca – e, de resto, continuavam assim até que a família decidisse resgatá-las para o casamento.

Megeras

Sogras eram piores que as megeras das piadas. A mãe de Sua Santidade foi tratada como escrava pela sua. Trabalhou de sol a sol. Passou fome. Perdeu filhos, levados por ?espíritos maus?, até chegar à quinta gravidez, quando, finalmente, teve um bom augúrio, o nascimento do Dalai Lama. Criou 16 filhos, das quais só sete sobreviveram, três deles destinados a virar lamas encarnados, provavelmente parecidos com Sua Santidade, que gostava de ordem, vivia arrumando sua trouxinha de roupa e alertava a todos que deveriam se preparar para deixar o Tibete. E assim foi. A família partiu para o exílio em 1959, quando os chineses invadiram o Tibete, confirmando a primeira profecia do pequeno Buda.

Sua mãe, que deixara de ser a simples camponesa para ser tratada como uma rainha, já havia perdido a liberdade muito tempo antes, em Lhasa. Ao descrever a casta budista, revela que sempre se viu como proscrita entre os aristocratas do Palácio Potala. Tão isolada que não hesita em relatar com detalhes a luta pelo poder entre os grandes, que levou seu marido à morte – provavelmente envenenado – e abriu caminho para a invasão chinesa. Nunca mais retornou ao Tibete. Morreu no exílio, depois de ver dezenas e dezenas de filmes musicais indianos, sua principal diversão. Detalhe: nunca entendeu os diálogos em hindi.

O menino Lama era obcecado por ordem

Da infância do lama ela fala pouco – o suficiente para confirmar que é mesmo um eleito, nascido de madrugada, antes do sol. Introvertido, vivia dentro de casa, obcecado pela ordem. Seu pai passou dois meses de cama. Desmaiava se tentasse ficar de pé e, nessas ocasiões, via os rostos dos ancestrais. Como não conseguia dormir à noite, mantinha a mulher acordada e durante todo esse período aconteceram fatos estranhos na casa, até que Sua Santidade nasceu, curando milagrosamente o pai.

Os cavalos pareciam enlouquecer. Saíam em disparada quando alguém se aproximava. Durante três anos não caiu uma gota de chuva na aldeia, que registrou uma dramática escassez de alimentos. A família só sobreviveu graças à ajuda dos monges de Kumbum.

Parece mais uma versão bertolucciana da vida do lama, algo como O Pequeno Buda. E foi, de fato. A mãe garante que Lhamo Dhondup era diferente de seus outros filhos desde o início. Uma criança séria, seriíssima. Quando visitava amigos ou parentes, não bebia chá de outra xícara que não fosse a da mãe.

Não deixava ninguém tocar em seu cobertores e, se topasse com um moleque brigão, pegava logo uma vareta e saía em perseguição ao desalmado. Sempre detestou fumantes. Parentes e amigos morriam de medo do garoto de 1 ano, que os olhava interrogativo. Quando a mãe perguntava de onde vinha, respondia com naturalidade: do céu.

Aos 2 anos, a comitiva que saiu em busca do décimo quarto lama chegou em Taktser e confirmou: Lhamo era mesmo o eleito. Havia escolhido o cajado certo, deixado propositalmente num canto pelo líder da comitiva que, surpreso, viu o menino tirar de suas roupas um rosário e insistir que o objeto de culto era dele, isso dito no dialeto de Lhasa, que bem poucos falam.

Invasão

As conversas com os religiosos budistas só rarearam quando os chineses invadiram o Tibete. A parte final da autobiografia é dedicada a uma descrição nada simpática do regime comunista. A mãe do lama diz que a família foi espionada em Taktser. Conta que planejou fugir vestida de monja (acabou escolhendo o disfarce de soldado) e que os chineses vingaram-se da fuga de sua família matando tibetanos em Lhasa. No entanto, tradições não se negam nem se esquecem, escreve a mãe do lama. ?Elas o fazem ser quem você é e definem o que você quer ser?. Diki Tsering escolheu a tradição e foi mãe de três lamas encarnados. O tempo vai se encarregar de dizer se fez a escolha certa.

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