Propaganda versus valores

Nem faz tanto tempo, dez, quinze anos atrás, e a propaganda na TV era mais amena, inteligente, criativa e familiar. Não poucas dessas propagandas eram mais interessantes do que os próprios programas. Não cansava vê-las repetidas e algumas deixavam saudades na lembrança.

Alguns espécimes deste tipo de propaganda na TV ainda existem, ainda se fazem. Felizmente. De resto, uma cada vez mais acelerada e violenta derrocada está em curso.

Acredito que aquelas propagandas induziam e convenciam muito mais o comprador. Com modesta simplicidade, e com isto certeira objetividade, simpáticas, desciam ao mortal comum… Hoje, ao contrário, o produto anunciado vem envolto numa imagem-cenário de requinte e luxo. E a sofisticação, este nimbo dourado, tem cheiro de boutique, logo $! E em muitos casos isso mais assusta do que atrai.

Está claro que esta maneira de ver a atual realidade só pode ser compartilhada por estes que ainda são e continuam sendo pensadores céticos e conservadores; que ainda teimam viver num mundo quadrado, que não gira igual ao de hoje. Mas são poucos e em rápida extinção. Não se aplica portanto, ao novo ser humano, o “homo shopping”, essa criatura que habita os shoppings e demais feiras das novidades peregrinas.

Mas isto nem é o detalhe mais importante a motivar este escrito. Árido, deserto, seria o campo da propaganda comercial, gráfico ou televisivo, sem a presença da figura feminina.

Desde o discreto-clássico, passando pelo poético romântico (existe isso ainda, nessa era de computação, do virtual?) até ao apenas sugerido sensual. Assim apresentada, a imagem da mulher, com a sua força e beleza, pode valorizar muito a propaganda. Esteja o anúncio tratando de uma marca de perfume ou de locomotivas Diesel.

Como prefiro a imagem impressa, a la Gutenberg, tenho aqui à minha frente, numa amarelecida folha de jornal de março de 1964, um anúncio do Volkswagen, quando ele ainda não era chamado de “Fusca”. Uma propaganda simples, simpática e, portanto, convincente. Passa aquela imagem que o veículo anunciado é verdadeiramente acessível.

Não foi necessário sentar nenhuma modelo seminua em cima para chamar o comprador. Naquela época o bom senso ainda andava com as pessoas. Também sobre rodas.

E eis que aquele Volkswagen, no anúncio do velho jornal à minha frente, de súbito ganha alma, ganha vida. Ouço até o peculiar ronco do seu motor… E então, embarco no Volkswagen e ele me leva às saudosas décadas do passado.

Como eram bonitas, simpáticas e familiares as velhas propagandas onde havia a presença da mulher. Como esposa, mãe, dona de casa e como moça também! Elas vinham vestidas. Bem e elegantemente. Mesmo em cenas de beira de praia, ou piscina. Até quando o maillot de duas peças se fazia presente, tinha ele ainda assim consideráveis superfícies de pano e decência. O belo sexo sabia valorizar-se, mantendo aquele mágico clima que só os mistérios inteligentemente ocultos conseguem.

A esta altura, alguns leitores devem estar me chamando de antiquado, ou, como mais modernamente se diz: “quadrado”. Até acho este, “quadrado” um bom termo, uma boa definição. São quase 60 anos de quadradice que carrego comigo. E quadrado vou morrer. Meu caixão terá o formato de um cubo.

Porém, graças ao fato de ser antiquado, quadrado, posso deixar meu espírito parado no tempo, em meio ao desmoronar dos derradeiros valores antigos, olhar em torno e tecer minhas considerações amargas mas também de resignação. Todavia, melhor ser “quadrado” do que rolar redondo, voluntária e entusiasticamente condicionado, junto com a grande multidão.

É bom poder dizer como Luthero: “Aqui estou eu e não posso diferente”.

Por volta dos anos 70 ainda se ouviam vozes de mulheres protestando contra a imagem “mulher objeto”. Infelizmente, todavia, as reclamantes eram geralmente feministas do calibre das “suffragettes”, do começo de século passado. Porque as mulheres-mulheres não reclamam disso, pois nem se colocam em situações de “mulher objeto”. Eram mais feministas do que femininas. Além do mais, aqueles gritos de nada adiantaram e logo silenciaram. E por triste ironia, hoje existem mais “mulheres objeto” do que nunca, aqui só falando do campo da propaganda visual. Sobretudo na TV, onde elas fazem mais efeito ocular, pois se movem, se mexem, se viram…

E tantas são essas senhoras e senhoritas (?), que já deve haver uma falta generalizada de fazendas para cobri-las todas. Por isso os trajes sumários.

O que, por sua vez, impossibilita qualquer reforma agrária. Porque onde não há fazenda, não existe reforma agrária…

Mas, humor à parte, voltemos à carne.

O que explica esse strip tease no campo da atual propaganda “ilustrada”, sobretudo essa que, contínua, o televisor despeja na tua sala?

Apelos pelados quase.

Sem entretanto, nem de longe, jamais aproximar-se, no que concerne à classe dos antigos nus artísticos, das telas famosas, e mesmo das fotos antigas do gênero. Por que ali, outrora, a beleza e a arte verdadeiras e limpas de malícia compunham as cenas. Enquanto que aqui, hoje, as cenas mais parecem ter escapado ou caído de alguma dessas novelas bem brasileiras…

E esta ofensiva não tem lugar apenas nos vales e montes da lingerie, das meias de náilon, dos sabonetes e demais produtos de banho e outros especificamente corpo-regionais.

Não! A ofensiva lança-se também ao mar das cervejas e igualmente embarca em carros da indústria automobilística. Nos automóveis e nas cervejas a atual e principal matéria-prima é a carne-ao-fio-dental. Já que tem de ser, penso que esta matéria-prima ficaria melhor em anúncios de produtos frigoríficos. Além disso, essas avalanchas de nádegas e adjacências estão ameaçadoramente concorrendo com as grandes novelas nacionais. Isto pode gerar um estado de insegurança nacional.

Há meio século atrás, nos anos 50, havia o luxuoso Cadillac, que por suas protuberâncias nos pára-lamas traseiros era chamado de “rabo-de-peixe” (quando, na verdade, quem teria direito a este título, seria o velho Tatra, um automóvel construído na Tchecoslováquia nos anos 30, e que possuía uma grande cauda, no meio da carroceria). No tempo do Cadillac vivia-se a época de ouro dos grandes cruzadores de estradas americanas…

Tamanhos, linhas e costumes mudaram desde então… sobretudo costumes.

Dos automóveis de hoje, apenas o nosso velho, sempre aual e eterno Volkswagen “Fusca”, o seu “novo” substituto, o Beetle, que impessoal, jamais será o “velho”, como o original e mais um bonito modelo de Crysler, ainda possuem pára-lamas salientes. O Cadillac atual já perdeu o seu rabo-de-peixe.

Talvez seja por isso, para sanar essa deficiência de pára-lamas que alguns fabricantes procuram, em suas propagandas na tevê, dotar seus carros de pára-lamas nádegas, de carne e osso, com mais carne do que osso, emprestados de belas mulheres-modelo, sentadas em cima das quatro rodas. E assim tem eles não só vistosos pára-lamas para seus novos modelos, como ainda, de brinde, rabos-de-peixe, digo, rabos-de-sereia.

A presença da mulher pode e deve enriquecer, embelezar e suavizar toda e qualquer propaganda correta e eticamente nomal. Todavia, bem outra coisa é essa deprimente enxurrada de pornopropaganda, agora quase já padronizada. Antiética, deselegante e sempre vulgar.

Já nem mais é caso de se criticar a falta de moral, mas de reclamar da falta de higiene. E o pior: tudo isso não é apenas um passageiro modismo, nem apenas uma reação imitativa em cadeia, tão própria à grande manada humana. Tudo isso está minuciosamente planejado, direcionado e orquestrado. Sinistramente.

Todavia, uma marca de automóveis das mais renomadas, pelas suas qualidades técnico-mecânicas e sua confiabilidade ímpar, e que há tantas décadas está aqui conosco no Brasil, tristemente conseguiu ir além, até. Numa infeliz atitude de falta de auto-respeito, de autodegradação, sem pejo, desceu à vulgaridade total, deixando que certos cômicos da tevê, conhecidos pelo seu humor pouco higiênico, promovessem sua marca. Se assim conseguiram esse objetivo, não sei. Mas dessa maneira a conceituada firma seguramente fomenta ainda mais a degeneração da propaganda na tevê. Que pena. Pois folhegando antigas publicações de propaganda desta marca, pode-se ver que estas, além de muito simpáticas e familiares, tinham também uma louvável preocupação de cunho educativo e cultura. Que pena.

Talvez estejam estas firmas desesperadoramente balançando na corda bamba vermelha, ou melhor dizendo, para combinar com a realidade do tema que aqui se comenta, digamos balançando no fio-dental vermelho.

É necessário descer tão baixo para vender esses dois produtos sempre tão cobiçados em nosso Brasil, a cerveja e o automóvel?

Triste e ver refletida nas propagandas comerciais a decomposição de um grande todo.

Darwin certamente hoje escreveria um outro livro: “A degeneração das espécies”.

Ser saudosista nesta época brutal prática, é no mínimo ridículo. Mas isso não me importa. A partir de agora, toda vez que eu sentir saudades dos tempos idos e quiser voltar ao passado mais ameno, embarcarei neste velho Volkswagen “Fusca”, impresso numa metade de folha de um jornal de 1964, e que eu zelosamente guardo na gaveta da minha mesa de trabalho.

Porque hoje já não mais se fabrica o Volkswagen “Fusca” como antigamente, ele que até na sua propaganda mostrava o bom senso.

Ivahy Detlev Will

é da Academia de Letras de União da Vitória.

Voltar ao topo