O chefe da estação

O olhar perdido na plataforma vazia. O último trem havia passado meia hora atrás. Num canto da sala o bater sincopado do telégrafo seletivo com seu monótono tin-ton de ponto e traço, a mão ágil do telegrafista no manipulador, enviava mensagens para as próximas estações. Empurrou o quépi para o alto de cabeça, apoiou os cotovelos na mesa e o queixo nas mãos.

Não sabia o por quê daquela estranha sensação de abandono e distância. Seu futuro era uma aposentadoria ainda meio longínqua.

Trens chegavam e partiam, passageiros desciam e embarcavam. Na plataforma avisava o maquinista que podia partir, ouvia o resfolegar de vapor da locomotiva no arranque, uma ligeira patinada nos trilhos, o apito reparara há muito que cada maquinista tinha um estilo de apitar – a composição, pesada a princípio, começava a rodar, resfolegante. Imaginava o foguista alimentando a caldeira com a pá cheia de carvão ou jogando madeira cortada para dentro daquela caverna de fogo.

O seletivo informava que trem vinha vindo. Podia ser de carga ou passageiros, apitando ao longe. Se fosse de passageiros, a parada era simples, na plataforma; se fosse carga, teria que deslocá-lo para um desvio, com apoio do Chefe de Trem e do Guarda-chaves.

Aquela era a vida do Chefe da Estação, monótona e como os trens sempre nos mesmos trilhos, sobre os mesmos dormentes.

Tinha um passatempo cristalizado na memória. Filho único era arrastado pela mãe às missas dominicais e catecismos. Tomara gosto pela leitura da Bíblia e pelo ritual litúrgico das missas nos quais se concentrava como um seminarista pronto a ser ordenado. Ao longo dos anos o hábito se fortaleceu e consolidou. Certa época bateu-lhe forte a vocação: quis ir para um seminário.

Na cidade havia um Seminário Menor. Falecida a mãe, continuou assistindo missas, prestando atenção no Latim dos padres, até engrolava algumas palavras e frases. A sobrevivência imediata falou mais alto e ele arrumou emprego na ferrovia, ano após ano galgando postos mercê de seu esforço e dedicação e agora era o Chefe da Estação.

De repente, não assim tão de repente é verdade, viu que o trem de sua vida só parava em estações vazias. Resolveu ir embora dalí, de tudo e de todos.

Agora, estava longe. O trem saíra de Campo Grande para Corumbá e ele, desta vez, era passageiro. Mundão perdido, o carro de 2ª classe onde viajava parecia uma Arca de Noé. Tentava se concentrar na leitura da Bíblia, o trem sacolejando na bitola estreita, mal conseguia lêr um salmo ou um versículo.

Naquele carro havia de tudo um pouco. Com o olhar perdido pela janela um homem acariciava o rifle “papo amarelo 44”; a mulher procurava calar a boca estridente do filho dando-lhe de mamar; um engradado de galinhas se bicando promovia um cacarêjo quase que disse “infernal” mas se conteve. Um papagaio ameaçava soltar-se das mãos da dona e sair voando enquanto o mico, encarapitado no encosto do banco, descascava e comia uma banana.

Pequenos lugarejos passavam pela janela como um caleidoscópio de tempo, ele via bois, cavalos, alguma gente, crianças, casas de taipa cobertas de sapé ou à moda índia, com folhas que não sabia identificar, o trem parava em pequenas estações adormecidas, sonolentas, no calor ardente do « dia.

Num solavanco do trem, desperto de um cochilo, foi que viu sob o banco da frente uma mala de couro marron, meio surrada, com duas correias passantes, de fivelas, o couro desbastado pelo uso. Parecia mala sem dono, esquecida por alguém. E era.

Pegou-a com cuidado pela alça, desafivelou as correias e abriu. Dentro havia uma batina de padre, foi mexendo, encontrou uma alva e uma casula, uma estola e o escapulário. Num canto da mala achou pátena, galhetas, cálices, uma âmbula, duas camisas brancas e um par de colarinhos clericais. Junto, uma Bíblia e um livro sobre a vida de São Tomás de Aquino protegido por 3 pares de meias pretas. Foi quando uma idéia lhe ocorreu.

Carregando a mala achada e a sua desceu na estação de um vilarejo poeirento, perdido naqueles ermos. O vento quente lhe batia no rosto e as estreitas ruas pareciam ôcas de gente.

Na placa da casa até bem arrumada viu escrito “Dá-se pouso e comida”. Tratado e negociado o preço com a dona foi arranchar-se no quarto, cama limpa com estrado de tábuas e colchão de palha. Foi ali, estirado, que passou o filme de sua vida, da estação que chefiava, da vocação frustrada, das missas que durante anos assistira. Se padre tivesse sido ordenado, pelo tempo, já seria monsenhor, no mínimo. Quem sabe bispo, devaneava.

Experimentou a batina. Servia direitinho. A camisa ajustada no pescoço era o lugar certo para o colarinho. Acertou o abotoamento da sotaina preta, ajeitou os cabelos no espelhinho da parede e saiu do quarto.

Um “Oh!” de respeitoso espanto o acolheu na sala do almoço. “-Um padre, graças a Deus!” falou a dona da pensão, persignando-se. Alguns hóspedes avançaram sem açodamento em sua direção, tomando-lhe a mão direita para beijar. Constrangido, ele murmurava “Deus abençoe” meio entre-dentes. Alguém perguntou-lhe quando iria celebrar missa na capelinha do povoado. Já com voz mais firme respondeu que amanhã iria, com certeza.

A voz de que havia um padre na vila e teria missa na capelinha correu pelo povoado como flecha desferida. Voltou para o quarto e, não sem preocupação, pôs-se a rememorar a liturgia da missa.

“Introibo ad altare Dei” irei ao altar de Deus, era o começo. Ficou mais seguro quando se lembrou de que as missas eram celebradas em latim, de costas para os fiéis. Lembrou do Salmo 23 e achou que ficaria bem naquelas circunstâncias (O Senhor é meu pastor e nada me faltará …). Sorte era o que precisava. Na mala não havia hóstias mas pensou que resolveria o problema com pedacinhos de pão, afinal, o Corpo de Cristo.

Respeitava a liturgia (substituiu a homilia por um pequeno sermão), deu a comunhão acolitado por um piá de uns 12 anos, à guisa de coroinha e que tremia todo na hora de pôr vinho e água nas galhetas. Concluiu que se saira bem.

Com o passar do tempo e de missas vieram confissões (cada coisa!), celebrações de casamentos, batizados, encomendação de defuntos e importante um posto elevado de conselheiro da comunidade, uma espécie de confiável autoridade temporal e espiritual. Mandou buscar em Campo Grande batina, casula e alva novas, renovando o guarda-roupas clerical.

Com apoio de criadores de gado, fazendeiros e fiéis em geral (as espórtulas dominicais eram de pouca monta, mas constantes, como é de hábito entre pobres) conseguiu construir uma pequena igreja, com dois quartinhos no fundo e uma saleta, a privada de fossa do lado de fora, a uns 10 metros da porta.

Os anos foram correndo, era respeitado e querido pelo povo, aprofundara os conhecimentos teológicos lendo livros, nas ruas por onde caminhava sempre sempre havia o “beija mão” contínuo. Estava em paz com a alma e o coração lavados em espiritualidade. Enfim, realizado, bem alimentado e feliz.

Um domingo, com a igrejinha lotada, inclinou-se no altar e concentrado sentiu o pensamento escapar para o distante tempo de Chefe de Estação, mas distante mesmo. Como que viu trens e passageiros, a azáfama na plataforma, pareceu ouvir o telégrafo seletivo batendo código Morse, locomotivas rechinando nos trilhos, as vozes dos carregadores, o filme do Passado ia passando em sua cabeça. As imagens tinha saudades e vívidas memórias.

Com a mão direita posta no gesto de benção, voltou-se para os fiéis, traçou a cruz no ar e disse em voz alta para ser ouvido em toda igreja:

– Mairinque! Baldeação Ituana!…

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