Miró foi um dos principais surrealistas

O primeiro surrealista a gente não esquece. Joan Miró. Tinha dezesseis anos quando vi uma série de reproduções do pintor espanhol: fiquei fascinado. Coisa de maluco. Os títulos das obras ainda mais delirantes: Libélula de asas vermelhas perseguindo uma serpente que desliza em espiral na direção do cometa ou A asa da cotovia cercada de azul de ouro junta-se ao coração da papoula que dorme no prado de diamantes. Tem sentido? Não. É surrealismo, coisa de louco porque despreza a razão. Ainda hoje olho Miró com o encanto de alguém que vê um Midas transformar em magia tudo que toca. Depois veio Luís Buñuel e outros surrealistas. Mas ninguém supera Miró ou Buñuel.

A leva surrealista tem de tudo: criativos, picaretas, alguns sem noção do surrealismo. Até hoje tem surrealista por aí, o que não deixa de ser surreal. O movimento, entretanto, morreu no dia 28 de setembro de 1966, quando André Breton fechou a conta, pagou o garçom e caiu fora deste mundo. Ele era o dono do negócio e não deixou gerente para tocar o boteco. Era egoísta demais: levou o movimento, manifestos, carimbos, notas fiscais, palavras de ordem. Era tudo ele, os outros convidados.

No dia em que Breton morreu o poeta Roberto Piva mudava-se em São Paulo para o bairro Casa Verde, quando um lençol branco escapuliu de uma gaveta e desfraldou na carroceria do caminhão, formando uma grande bandeira branca enfunada ao vento, enquanto Piva berrava: ‘André Breton morreu, André Breton morreu’. Surrealismo. Piva é dos poucos notáveis surrealistas brasileiros, com seus 72 anos, despejado de lugar para outro, em São Paulo. A brasileira mais notável no pedaço é a pouco divulgada escultora Maria Martins, amante de Marcel Duchamp, quando ainda casada com o embaixador Carlos Martins.

Minha cartilha registra cinco surrealistas: Hieronymus Bosch e Pieter Brueghel nos séculos 15 e 16; Miró, Buñuel e Maria no século 20. Mas todo surrealista sabe que o movimento não existiria com este nome sem Sigmund Freud e André Breton. O primeiro escreveu A Interpretação dos Sonhos, que deu ao segundo as bases do movimento, que foi o sentido de sua vida. Vamos ao primeiro. No dia 4 fez 110 anos que Freud publicou A Interpretação dos Sonhos, um dos livros mais importantes do século passado, que vendeu 228 exemplares nos dois primeiros anos de sua publicação. A tiragem de 600 exemplares demorou oito anos para se esgotar. Em seu lançamento o livro não foi comentado nas publicações científicas e quando alguém se referia ao trabalho, era para baixar o sarrafo. Dez anos depois a ficha caiu e a comunidade científica percebeu a revolução à sua volta. Até o livro de Freud, sonho era objeto de interpretações simbólicas, a bíblia está entupida disso. Depois, mudou.

Com o livro Freud carimbou passaporte como um dos três pensadores influentes do século 20. Os outros dois – Karl Marx e Charles Darwin – tiveram destinos diferentes. Marx padece hoje de um paradoxo: embora suas análises sobre os malefícios do capitalismo resistam em pé, os elixires que engendrou para curar a doença produziu diarréias inúteis e as cólicas continuaram regulares como sempre. O velho Darwin continua na velha lida para provar que o macaco é nosso primo, ainda que não seja filho de nossa tia. Pior: com o descrédito de Marx, Darwin herdou a impopularidade nos meios religiosos, principalmente americanos, os mesmos que alegavam não suportar comunismo por ser coisa de ateu. Freud teve tantos seguidores que hoje virou ortodoxo.

Um deles, o mais herético, foi Wilhelm Reich, autor de A Função do Orgasmo. Teve ainda Carl Jung, Anna Freud, Bruno Bettelheim, Ernest Jones, Jacques Lacan, Lou Andreas-Salomé e Melanie Klein. Mas nenhum mais doido que André Breton, que leu Freud e resolveu levar as bases da psicanálise, com pitada de marxismo, para o território da arte. E inventou o surrealismo. Breton era tirânico e controlou o movimento com mão de ferro até o fim da vida, um paradoxo controlar algo que propõe o absoluto descontrole. Mas o surrealismo ganhou status. É possível dizer que há surrealismo anterior a Freud, mas ningu&e,acute;m pode negar que a piração nas artes nunca na história deste mundo chegou a patamares tão elevados quanto com o surrealismo do Papa Breton I. Fenômeno que se Freud visse, diria: ‘Coisa doida, sô’.

O certo é que, do ponto de vista teórico, o surrealismo é filho estético de A Interpretação dos Sonhos, da mesma forma que o cubismo é filho dileto de Cézanne e o expressionismo não é filho de mãe nenhuma. No entanto, assim como o expressionismo e ao contrário do cubismo, o surrealismo não ficou na pintura e na escultura e invadiu a literatura, o teatro, a poesia e o cinema. Claro que isto conferiu amplitude ao movimento. E como o surrealismo não tinha perfil contestador, e se tivesse não ficou muito claro, foi popular nos Estados Unidos.

A engenhoca é simples e Breton foi esperto. A partir da constatação de que os sonhos são emanações livres influenciadas por acontecimentos recentes, ou, como diria Freud, ‘o sonho é a estrada real que conduz ao inconsciente’, Breton propôs uma arte que expressasse tanto na escrita quando na pintura e escultura, a espontaneidade livre de qualquer interferência racional ou moral. O surrealismo difere do dadaísmo, ao abolir o impulso anárquico e destrutivo e propor ‘um homem novo em uma sociedade nova’. Doido e pretensioso. Breton diria: ‘Surrealismo é o automatismo psíquico puro pelo qual se propõe expressar, verbalmente, por escrito, ou de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento’. É isso aí, bicho.

O diacho do surrealismo é ser manifestação humana e sujeito a tudo que é humano incluindo maluquices, equívocos, safadezas e genialidades. Uma das maluquices é descrita por Miró em seus primeiros anos de Paris: um grupo de surrealistas a princípio por brincadeira e depois levando a brincadeira adiante tentou enforcar o pintor espanhol que, percebendo a coisa surrealista demais para o seu gosto, caiu fora e por precaução ficou um tempo sumido.

O grande equívoco surrealista foi tratar um tema tão onírico de forma tão pétrea sob o comando de André Breton, produzindo efeitos colaterais como brigas, acusações e afastamentos de membros, como Salvador Dali, acusado por Breton de fazer qualquer negócio por dinheiro e não ter nada de surrealista, nem o bigode. Dali mandou todo mundo para a pulga que partiu e foi ganhar seus dólares com avidez. Breton se vingou chamando-o de ‘Avida Dollars’, anagrama infame com o nome do desafeto. Este foi um caso agudo de dissidência estética ou financeira, mas houve outros, poético-ideológicos como o de Louis Aragon.

De qualquer forma é inegável que o surrealismo foi um terremoto no século 20. E assim como veio, se foi. Hoje, apesar das surpreendentes colagens de Max Ernest, da delicada ilusão visual de Magritte ou das estripulias fotográficas de Man Ray, para ficar em três exemplos, o certo é que o legado mais interessante foi deixado por Miró na pintura e Luís Buñuel no cinema. É até difícil dizer se eles transcendem o surrealismo ou se com eles o surrealismo bateu ponto no teto.

As formas lúdicas e tenebrosas de Miró são tão clássicas hoje quanto qualquer clássico da pintura e o legado de Buñuel como grande mestre do cinema é incontestável. O roteirista Jean-Claude Carrière jura que Buñuel é mais importante que Pablo Picasso, embora um seja cineasta e outro pintor, ainda que ambos sejam espanhóis, a melhor nacionalidade para ser surrealista. No meu caso, me identifico com o primeiro surrealista que me fascinou: Miró. Loco, pero maneiro.