Carlos Lyra faz elogiada série de shows em clube de jazz em NY

Quando tropeçou no tapete da sala de casa e levou um tombo que lhe causou lesões nos dois ombros, em abril, Carlos Lyra pensou: “Ótimo, agora não preciso mais ir a Nova York!”. Não que ele não quisesse viajar com o amigo Marcos Valle, que o convidou para oito shows no Birdland, o renomado clube de jazz de Manhattan. Mas Lyra, aos 79 anos, 60 de música, um dos arquitetos da bossa nova, estava desconfiado. “Detesto avião, tenho claustrofobia, e saí daqui (do Brasil) meio cético quanto ao que poderia acontecer. Foi fantástico, melhor do que eu esperava”, diz ele, que prepara programação especial para seus 80 anos, que serão comemorados em maio de 2016.

Embora sua filha única, a cantora Kay Lyra, more em Nova York desde 2009, fazia 50 anos que ele não se apresentava nos EUA. A última vez fora com Stan Getz – o saxofonista que ajudou a espraiar a bossa pelo mundo -, numa série de shows no festival de jazz de Newport, no Estado de Rhode Island. Era 1964 e a brisa vinda da zona sul carioca estava no auge do frescor por lá. Desde essa época, faltou convite.

“Foi desinteresse deles, mesmo. Ao abrir o show, brinquei: ‘Estou fazendo aniversário de 50 anos que não venho aqui!’ Fui sem esperar muito, e aí o prazer é triplo: você trabalha porque gosta, recebe por isso e ainda tem gente para assistir”, conta o parceiro de Vinicius de Moraes em “Minha Namorada”, “Você e Eu”, “Marcha da Quarta-feira de Cinzas” e “Primavera” (entre outras), considerado por Tom Jobim um “romântico de derramada ternura”, “grande melodista, desenhista, harmonista, rei do ritmo, da síncope”.

Os shows, dois por noite, ambos com casa cheia, foram de 27 a 30 de maio. Na plateia, meio americana, meio brasileira, colegas radicados na cidade: Dom Salvador, Maucha Adnet e Eumir Deodato. Num bate-papo fraternal e bem-humorado, Lyra e Valle se dirigiram ao público em inglês e cantaram, intercalando os dois idiomas, clássicos bossa-novistas, como “Samba de Verão” (Marcos e Paulo Sérgio Valle) e “Lobo Bobo” (Lyra e Ronaldo Bôscoli) e a única parceria dos dois, “Até o Fim”. Patricia Alví, mulher de Valle, cantou “Maria Ninguém” (só de Lyra) e “Saudade Fez Um Samba” (outra com Bôscoli).

Por causa do acidente doméstico, o violão teve de ficar com Valle, que se revezou entre cordas, teclado e piano. “Foi bom, interpretei mais”, avalia Lyra. Ele credita o sucesso das apresentações ao alentado perfil seu que o NY Times publicou dia 15 de maio. E também à boa fama do Birdland, inaugurado em 1949 e frequentado não só por locais, mas também por turistas de gosto musical apurado.

Já Valle vê modéstia na inferência do amigo. “Tem uma coisa mágica ele ter sido da primeira turma da bossa nova, ter estado no Carnegie Hall em 1962 (no show com Tom, João Gilberto e muitos mais, que se tornou mítico por apresentar a bossa aos EUA) e contar isso à plateia. É um show interessante historicamente, e vai ter consequências”, acredita o compositor, nove anos mais jovem e da segunda geração da bossa.

As consequências imediatas serão novos shows pelos EUA, que a produtora que os convidou para o Birdland, Pat Phillips, está gestando para o ano que vem. Pat trabalha com bossa nova em NY desde 1989, quando produziu um show de Tom no Carnegie Hall, em comemoração aos 25 anos de “Garota de Ipanema”. A ideia é levar a dupla de volta a Nova York e rodar por São Francisco e Washington. “Valle é um grande compositor, melodicamente e ritmicamente, e leva adiante o legado da bossa nova lindamente. Quanto ao Lyra, por onde começar? Pode não ser propriamente um cantor, mas tem o charme e o talento de Tony Bennett e Frank Sinatra. Ele é um tesouro”, derramou-se Pat, por e-mail.

As apresentações mereceram elogios da importante revista DownBeat, especializada em jazz e blues, que considera a série produzida por ela no Birdland, BossaBrasil, uma reintrodução da bossa nova nos EUA. Apontado como “destruidor de corações em sua juventude”, Lyra, segundo a publicação, “deleitou a plateia com sua suave voz de barítono”.

Valle já participa há oito anos dos shows no clube de jazz. Foi primeiro como convidado de Emílio Santiago (1946-2013), e depois passou a anfitrião. Já levou Wanda Sá, Paula Morelenbaum, Roberto Menescal e Stacey Kent. “Eu já tinha mencionado e ele era meio avesso a ir a Nova York, mas, no fundo, queria”, acredita o compositor, que, como outros nomes associados à bossa, como Menescal, João Donato e Joyce, faz shows internacionais com frequência muito maior do que Lyra, “por uma questão de personalidade”.

No apartamento em que vive com a mulher, a produtora Magda Botafogo, em Ipanema – o prédio, na Rua Nascimento Silva, é colado àquele mencionado na Canção ao Tom, de Vinicius e Toquinho, mas ele comprou sem perceber a incrível coincidência -, o compositor carioca admite que a experiência nova-iorquina o estimulou bastante. “Levantou minha moral, foi um acontecimento. Até os ombros pararam de doer. Já viajei muito, mas hoje só vou quando vale muito a pena. Ao Japão (grande mercado para a bossa) parei de ir em 2008, porque o país faliu, começaram a pagar mal e eu não vou por mariola.”

Lyra se dedica com gosto ao teatro, gênero no qual se lançou, com Vinicius, em “Pobre Menina Rica”, musical de 1963 – à época, o autor escreveu que “de todos os modernos compositores brasileiros, sem distinção entre populares e eruditos”, o parceirinho era “o mais bem aparelhado para escrever música para teatro”. O último foi “Era no Tempo do Rei”, de 2010, em parceria com Aldir Blanc, sobre texto de Ruy Castro. O próximo deve ser um Otelo brasileiro, desenvolvido com Daltony Nóbrega.

Ele tem ainda planos de lançar um DVD de inéditas, “Além da Bossa”, com canções que vem compondo com parceiros como Paulo César Pinheiro, Joyce e Ronaldo Bastos. Falta patrocínio. “Desanima. Eu penso: vou lançar para quê? Não tem mais quem queira ouvir. Fico feliz quando faço um show e as pessoas ainda estão lá.” Magda acrescenta que “o que nos salva hoje são os editais”. “Mas os valores caíram tanto que não pagam artistas mais conhecidos”, lamenta.

Em São Paulo, os shows costumam ser nos espaços do Sesc. No Rio, não encontra palcos. “O Rio explora muito mal a bossa nova, poderia ser um atrativo turístico incrível. Quando vem alguém de fora e me pergunta onde ouvir, eu penso em responder: ‘Não sei, vem aqui em casa que eu toco para você’.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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