O troglodita elegante que falava uma língua estranha dentro no ônibus

Quando eu subi ao ônibus a primeira coisa que prestei atenção foi nele. No velho negro sentado no banco atrás do motorista. Ele falava rapidamente de uma forma que eu não entendia o que estava falando. Achei a princípio que conversava com o motorista que também era negro. O motorista olhava pelo retrovisor e foi isto que me deu a equivocada convicção. O motorista voltou a olhar para a rua, colocou o carro em movimento e não deu a mínima para o falatório do negro atrás dele, embora tudo o que o velho negro falasse ele pudesse ouvir.

Passei a catraca e sentei no banco dianteiro próximo da cobradora. Olhando atentamente achei que o velho negro fosse alguém com problemas mentais, mas esta ideia era difícil de aceitar porque ele tinha expressão quase nobre, com uma barba branca bem aparada e se vestia de maneira sóbria. Pode ser um erro achar que uma pessoa com problemas mentais não seja elegante. Tem muitos elegantes que são doentes mentais. E tem muitas pessoas que andam desalinhadas que não são. Um problema complexo, certamente.

Eu tentava entender alguma coisa do que o velho falava, mas nada. Ele usava a mão direita com gestos para reforçar o que dizia. De cara descartei que ele fosse haitiano, porque o seu linguajar não parecia crioulo. Como eu estava encabulado, a cobradora loira chamada Waldirene, que conhece a maior parte das pessoas no ônibus que vai para o Abranches, me disse com a maior naturalidade: “Ele fala assim porque é troglodita”. Foi um choque: um troglodita elegante.

Algumas quadras adiante o negro começou a falar de forma furiosa. Até que perto da Churrascaria do Ervin, ele desceu e foi embora. Enquanto o negro falava, ninguém no ônibus se importava, como ninguém ouvisse o falatório destrambelhado. Depois que ele se foi, todo mundo começou a dar opiniões. Waldirene tentou mediar o debate descontrolado. “Eu disse para este moço de cabeça branca, que o homem é um troglodita. Eu conheço ele. Todo dia ele aparece aqui falando uma língua diferente”, disse ela.

Foi então que eu compreendi que Waldirene não queria dizer troglodita, dos povos da África, que moravam em cavernas próximas ao Mar Vermelho. Mas, sim, poliglota, um sujeito que fala várias línguas. Naturalmente Waldirene estava usando a expressão com ironia, mas, assim como o negro que falava sem saber o que estava falando, a cobradora também não sabia do que falava. De qualquer forma, o negro não era nem troglodita, nem poliglota.