Diploma do cabo-de-guerra

Num dia, o presidente, ao saudar novos diplomatas no Itamaraty, referindo-se à comunidade de países de língua portuguesa, insere a Índia no continente africano; noutro, recebendo o embaixador da Noruega, anuncia o desejo de ?vê-lo novamente? em jantar que o chanceler Celso Amorim estaria organizando para embaixadores da União Européia (UE). Tanto na fala em que muda a geografia quanto no discurso em que insere o país nórdico num bloco a que não pertence, Lula demonstrou desconhecimento de geopolítica. Para um ex-metalúrgico que confessa ter feito apenas o curso do Senai, o erro é compreensível. Para o presidente da República, porém, gafes contínuas causam desconforto e até constrangimento, quando não risos, na platéia, como os episódios em que falou da viagem (inexistente) de Napoleão à China, confundiu libaneses com líbios ou disse ao primeiro-ministro Tony Blair, na Inglaterra, que estava prevendo para muito breve sua aposentadoria.

O desembaraço e a conseqüente série de imprecisões geográficas e históricas que balizam os discursos de Lula sobre ?tudo e todos? impressionam, sobretudo quando o campo escolhido é o das relações exteriores (objeto de freqüentes análises nesta página pelo ex-ministro Celso Lafer), bem mais arenoso que campos de futebol, que se prestam às suas metáforas. Acontece que a política externa é um dos pontos fortes do governo. A diplomacia brasileira arremete com força contra barreiras alfandegárias de países ricos, abrindo margem para mudanças na esfera do comércio internacional. Além disso, começa a construir pontes de integração com a Índia e a China. Quer ter um diálogo mais igual com o Hemisfério Norte. No sul do nosso hemisfério, esforça-se para reforçar o Mercosul, incluindo Peru, Colômbia e Venezuela, por exemplo. Perante o bloco dos mais ricos levanta a bandeira da erradicação da fome, flagelo que maltrata 15% da população mundial.

Ao lado profissional da diplomacia, porém, se contrapõe uma banda amadora, que esmaece feitos da política externa. Nela apitam políticos medíocres derrotados, militantes de partidos de esquerda deslumbrados e figuras carimbadas do exotismo. Em Cuba, o ex-padre Tilden Santiago é um esfuziante embaixador que não se cansa de dançar salsa em festas quase diárias, segundo a Veja. Outro ícone da diplomacia capenga do Itamaraty, habitada por ?amigos do rei?, é o ex-presidente Itamar Franco, de quem nunca se soube o que fez em seus estágios como embaixador e se espera a definição do que vai fazer. Em Portugal, onde atualmente está o ex-deputado Paes de Andrade, há sempre um lugar reservado para quem não fala inglês.

A distribuição de embaixadas entre políticos e amigos, vale dizer, não é privilégio brasileiro. A politicagem se faz presente até nos EUA, onde amigos do presidente acabam sendo brindados com altos postos. Alguns brilharam na diplomacia, como Henry Kissinger e Foster Dulles, outros foram opacos, como Joseph Kennedy, pai do presidente JFK e amigo de Roosevelt, que, apesar de ter sido traficante de bebidas, foi embaixador em Londres. Entre os nossos, aponta-se Assis Chateaubriand, que Juscelino nomeou embaixador em Londres como forma de retribuir o apoio dos Diários Associados.

A diplomacia amadorística é plena de sentimentalismo. Nos tempos de Geisel, corruptas ditaduras marxistas africanas receberam uma bolada de financiamentos. Acabaram perdoadas. No Oriente Médio, o Brasil ajudou Saddam Hussein (com armamentos da Engesa e Avibrás, por exemplo), que, em retribuição, prometeu nos vender petróleo com descontos. As empresas quebraram. E ficamos a ver navios. O governo Figueiredo emprestou bilhões de dólares à Polônia comunista. Foi calote certo. Agora, o Brasil abre as asas para a Líbia, Síria e outros eixos ditos ?revolucionários?.

Vejam-se os casos mais recentes envolvendo o Itamaraty: a exclusão de inglês das provas eliminatórias e o esforço do governo para convalidar, no Brasil, o título de médico que estudantes escolhidos pelo PT trazem de Cuba. Trata-se, como se sabe, de um privilégio inadmissível, na medida em que o ensino cubano forma um generalista básico, formação incompatível com as exigências de nossas universidades. A roda das banalizações e do nivelamento por baixo se fecha por aqui. Mas é o suficiente para explicar a pouca importância que Lula confere ao conceito de excelência. O desconhecimento do presidente Lula sobre geopolítica não causa estranheza aos itamaratecas que dão o tom maior, para quem a gafe gerada pela ignorância vale mais que o aplauso conseguido com o saber. Expliquemos: Costa e Silva, encontrando-se com o presidente Nixon, ficou calado, em grande silêncio, depois de um rápido ?how do you do??. O assessor indagou se estava se sentindo bem. O velho presidente, sarcástico, respondeu: ?Claro. Estou calado apenas porque meu inglês acabou?.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político.