Almas tortas da nação

Gaudêncio Torquato

Almas das nações e eixos vigorosos da democracia, as instituições são maiores que os homens. Enquanto estes passam, aquelas subsistem independentes e harmônicas na concepção traçada por Montesquieu. A existência de instituições fortes, capazes de responder às demandas sociais, distingue sociedades politicamente desenvolvidas de sociedades subdesenvolvidas. São elas que criam as formas de previsibilidade, garantindo a um país estabilidade política, crescimento contínuo e meios para administrar riscos, ameaças e oportunidades. Basta esse rápido olhar para flagrarmos a dimensão em que se encontra a sociedade brasileira. Aqui, governantes costumam exibir mais força que as nossas tortas instituições, a separação dos poderes não passa de uma quimera e a democracia acaba tendo seus vetores corroídos por um arsenal autoritário que dita rumos e padrões da cultura política.

A cada semana, um evento aparece para enfeitar a fisionomia esburacada das instituições nacionais. O último foi uma portaria determinando que as pesquisas do IBGE passem pelo crivo do Ministério do Planejamento 48 horas antes da divulgação. É visível a relação entre este fato e a sinuca de bico em que ficou o presidente Luiz Inácio depois de ver seu propagandístico Brasil famélico desmoronar diante de um país com mais obesos que esfomeados, na fotografia feita pelo IBGE. A questão morreria por aí, não fosse um conjunto de instrumentos que demonstra a irreprimível vocação do atual governo para controlar o tom da orquestra nacional. Eis um sumário: Lei da Mordaça do Ministério Público, Ancinav, Conselho Federal de Jornalismo, portaria exigindo silêncio dos funcionários públicos a respeito de atividades e controle dos partidos da base aliada.

Pincemos este último caso. Lula cobra dos senadores José Sarney e Renan Calheiros – interlocutores do PMDB que escolheu para dialogar, passando por cima da direção partidária – a filiação àquele partido do ministro Ciro Gomes, afastado do PPS. Tem o presidente da República a prerrogativa de controlar a vida de partidos aliados, patrocinando filiações, inchando ou desinchando siglas? Nos últimos tempos, porém, o País assistiu à maior transferência interpartidária de sua história, que redundou no adensamento do PL e do PTB. A operação, mesmo que amparada em toscos cânones partidários, carece daquela seiva ética que se faz tão necessária às instituições. Não é de admirar que nossos atores políticos desçam do altar do prestígio para freqüentar os espaços do desrespeito, da descrença e da execração pública.

E o que dizer do parlamento, cada vez mais atrelado ao rolo compressor do Executivo? Veja-se o caso das medidas provisórias (MPs), essa invenção da Constituição de 88, cuja edição e reedição só se justificam na ocorrência de fatores de relevância e urgência. Se a maioria das MPs não se fundamenta naqueles pressupostos, por que o Congresso Nacional não breca tal abuso? Porque o presidencialismo imperial brasileiro, revigorado no governo do PT, inaugura um insólito tempo de normatização da exceção, com o apoio do próprio corpo parlamentar. As palavras do velho Rui Barbosa continuam valendo: "Os nossos presidentes carimbam as suas loucuras com o nome de leis e o Congresso Nacional, em vez de lhes mandar lavrar os passaportes para um hospício de orates (idiotas, loucos), se associa ao despropósito do tresvairado, concordando no delírio, que devia reprimir".

Nesse jogo de faz-de-conta entre poderes se esconde a cultura autoritária desenvolvida na ditadura de Vargas, revigorada até o fim da ditadura militar (1964-1984), esmaecida nos anos da redemocratização, a partir de 1985, e que permeou as quatro correntes desenvolvimentistas das últimas décadas: a ditatorial-populista, que implantou a infra-estrutura estratégica nos setores de aço, energia e petróleo; a desenvolvimentista-democrática (Juscelino Kubitschek), responsável pela substituição de importações; a autoritária-militar, fusão das duas anteriores; e a atual corrente democrático-liberal do ciclo da globalização econômica.

Se é verdade que os executivos federais se têm apegado à instrumentos autoritários, com ênfase nas atuais e famigeradas MPs, cuja semelhança com os decretos-leis das ditaduras varguista e militar é patente, o governo Lula exibe uma estrela a mais na bandeira do presidencialismo imperial: o gosto acentuado pelo mando em todas as esferas institucionais. A Constituição dotou a República de órgãos de controle, como os Tribunais de Contas, e, mais recentemente, Lei de Responsabilidade Fiscal, agências reguladoras e Conselho Nacional de Justiça para o Judiciário. Nenhum deles, porém, supera os controles do Poder Executivo sob o signo petista. Fernando Henrique, que também usou excessivamente MPs quando presidente, chegou a cunhar a seguinte frase nos tempos de senador: "Ou o Congresso põe ponto final no reiterado desrespeito a si próprio e à Constituição, ou então é melhor reconhecer que no País só existe um poder de verdade, o do presidente. E daí por diante esqueçamos de falar em democracia". A frase continua na ordem do dia.

Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor político.