Basta nascer para ganhar 1 milhão de dólares

Tem muita gente que acha que Vantuil exagera na dose com suas propostas mirabolantes para resolver os problemas do mundo. Fui lá esses dias cortar o cabelo no seu salão e não havia notado nada demais, até que a TV despejou uma notícia sobre um relatório da ONU que apontava a miséria no mundo.

Foi o que bastou para Vantuil metralhar argumentos na mesma velocidade com que manipulava a tesoura. Eu prestava atenção ao que ele falava enquanto folheava uma revista, mas confesso que não tinha a menor ideia de onde ele queria chegar, tamanha era a desordem da sua linha de pensamento.

De repente ele bolou a solucionática para a fome no mundo. Disse de forma resoluta que toda pessoa deveria ganhar 1 milhão de dólares ao nascer. A grana seria para que a pessoa estruturasse a sua vida, com uma casa boa para morar com todo o conforto, carro, financiamento dos estudos e o start num projeto de vida.

Se torrasse com besteira, do tipo farra e bebedeira com os amigos, não teria segunda chance. “O que você acha?”, indagou. Tentei ser o mais cauteloso possível para não parecer professor de Deus e lhe disse que pelo pouco que entendia de economia, se todo mundo ganhasse um milhão de dólares o dinheiro não valeria esta importância, seria devorado pela inflação provocada pelo excesso de moeda em poder do público.

Ele me deu razão, com ar pesaroso e eu me senti um estraga prazeres. A intenção de Vantuil era muito boa, mas é aquele negócio: faltava combinar com os ditos agentes econômicos. Pensei comigo que se por um milagre fosse possível distribuir uma riqueza desse patamar em larga escala, infelizmente seria um desastre ter tanta gente com tamanho poder de compra de uma só vez. Iriam faltar produtos e os que sobrassem custariam tão caro que poucos conseguiriam comprá-los.

Enquanto em meus pensamentos eu constatava a inviabilidade da tese de Vantuil, ele já havia esquecido o assunto e tinha embarcado em outro. Dois clientes que aguardavam a vez haviam comentado que ouviram dizer que o dono da Friboi era o ator Tony Ramos. Quando ouvi isso, tratei de me isolar na minha leitura. Mas Vantuil não se fez rogado: disse aos clientes que eles estavam enganados. Segundo suas fontes, Tony Ramos podia até ser um testa de ferro, mas o chefão era o filho do ex-presidente Lula.

Pensei em intervir, mas resolvi deixar correr porque a esta altura a conversa já havia derivado para as mazelas do país. Cedo ou tarde eles iriam descobrir a verdadeira razão social da Friboi. E a discussão que eles estavam travando valia muito mais a pena.

Mas lenda urbana ali não falta. Até o lance marcante do jogador do Barcelona, Daniel Alves, que respondeu às agressões por racismo comendo uma banana que um torcedor do Villarreal jogou para ele, ganhou um contorno de fantasia. Quem recontava a história foi taxativo em afirmar que Daniel Alves bateu o escanteio e ainda fez o gol. Fiquei com vontade de dar um cartão amarelo para o cara, mas fiquei quieto.

Cabelo aparado entre mortos e feridos todos sobreviveram. Era a minha deixa: pagar e achar o rumo. Quando estava saindo ainda tive tempo de ouvir Vantuil dizer que “o Brasil era um país maravilhoso, onde mais se faz pesquisa no mundo”.

Fui embora pensando que Vantuil e seus amigos eram felizes defendendo suas ideias e teses absurdas, não importava se estavam erradas à luz da dura realidade dos fatos. Vantuil fala o que pensa e se alguém lhe mostra que está errado, descarta o ponto de vista e parte para outro. Faz isso com a mesma naturalidade com que apara os cabelos dos clientes.

E como disse Vantuil, o Brasil de fato é um país maravilhoso, onde vigora uma democracia – embora ainda jovem -, que permite a liberdade de as pessoas se expressarem. Ainda tem muito para melhorar, basta ver os noticiários do dia a dia. No campo da pesquisa científica apresentou grandes avanços. Não está em primeiro como pensa Vantuil, mas subiu dez posições em 20 anos e aparece em 14º no ranking mundial. A ressalva é que, segundo publicações especializadas, a qualidade destas pesquisas caiu muito nos últimos anos, o que remete a uma reflexão sobre a qualidade do ensino. Quando Vantuil souber disso certamente dirá que este pessoal é preciosista demais e fim de conversa.