Não há improbidade em acumulação de cargos sem dolo ou prejuízo

 

A ementa é a seguinte:

 

“ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ACUMULAÇÃO DE CARGOS PÚBLICOS. AUSÊNCIADE DOLO OU MÁ-FÉ. PRESTAÇÃO EFETIVA DE SERVIÇO PÚBLICO. MODICIDADE DA CONTRAPRESTAÇÃO PAGA AO PROFISSIONAL CONTRATADO. INEXISTÊNCIA DE DESVIO ÉTICO OU DE INABILITAÇÃO MORAL PARA O EXERCÍCIO DO MUNUS PÚBLICO. CONFIGURAÇÃO DE MERA IRREGULARIDADE ADMINISTRATIVA.

1. ‘A Lei n. 8.429⁄92 visa a resguardar os princípios da administração pública sob o prisma do combate à corrupção, da imoralidade qualificada e da grave desonestidade funcional, não se coadunando com a punição de meras irregularidades administrativas ou transgressões disciplinares, as quais possuem foro disciplinar adequado para processo e julgamento.‘ (Nesse sentido: REsp 1.089.911⁄PE, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 17.11.2009, DJe 25.11.2009.)

2. Na hipótese de acumulação de cargos, se consignada a efetiva prestação de serviço público, o valor irrisório da contraprestação paga ao profissional e a boa-fé do contratado, há de se afastar a violação do art. 11 da Lei n. 8.429⁄1992, sobretudo quando as premissas fáticas do acórdão recorrido evidenciam a ocorrência de simples irregularidade e inexistência de desvio ético ou inabilitação moral para o exercício do múnus público. (Precedente: REsp 996.791⁄PR, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 8.6.2010, DJe 27.4.2011.)

Agravo regimental improvido.”

(STJ – AR no REsp 1245622/RS – 2ª T. – Rel. Min. Humberto Martins – DJe de 24.6.11)

 

            Do voto do eminente relator, extraem-se os fundamentos do acórdão:

O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator):

 O inconformismo do agravante não merece prosperar. Com efeito, como inscrito na decisão agravada, sabe-se que a Lei n. 8.429⁄1992 é instrumento salutar na defesa da moralidade administrativa, porém sua aplicação deve ser feita com cautela, evitando-se a imposição de sanções em face de erros toleráveis e meras irregularidades. No caso dos autos, o Tribunal de origem acolheu como razão de decidir a sentença lançada pelo juízo primevo, cujos fundamentos apontam pela inexistência de ato ímprobo – pelos seguintes motivos: a) não haver dolo ou culpa na conduta do réu; b) inexistência de prejuízo ao erário. É como se infere dos seguintes excertos do acórdão recorrido: ‘… conforme asseverado pelas testemunhas inquiridas sob o crivo do contraditório, antes mesmo da contratação do demandado foram consultados os órgão competentes, os quais afirmaram inexistir ilegalidade no ato e que as contas foram acolhidas pelo TCE.‘ (e-STJ fl. 252.)  ‘... não restou comprovada a culpa ou o dolo do réu ao receber as quantias cumulativamente, sendo importante salientar que inexistiu prejuízo ao erário, já que o serviço foi prestado de forma satisfatória, conforme asseveraram as testemunhas, como o que, inclusive, foram aprovadas as contas da administração pelo TCE‘ (e-STJ fl. 253.) ‘… levando-se em consideração os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, não há como o requerido ser condenado por ato de improbidade se realizou  serviço rigorosamente, recebendo pelas atividades valores módicos, que não lhe geraram enriquecimento. (e-STJ fl. 253.)

Dessa maneira, foi expresso na decisão recorrida que o caso adequou-se ao posicionamento já exarado por esta corte, de que, na hipótese de acumulação de cargos, se consignada a efetiva prestação de serviço público, o valor irrisório da contraprestação paga ao profissional e a boa-fé do contratado, há de se afastar a violação do art. 11 da Lei n. 8.429⁄1992, sobretudo quando as premissas fáticas do acórdão recorrido evidenciam a ocorrência de simples irregularidade e inexistência de desvio ético ou inabilitação moral para o exercício do múnus público(Precedente: REsp 996.791⁄PR, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 8.6.2010, DJe 27.4.2011.)

Colacionou-se o seguinte precedente, que tão bem ilustra a distinção do ato ímprobo e daquele considerado mera regularidade:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AGENTES PENITENCIÁRIOS. AGRESSÃO CONTRA PARTICULAR. VIOLAÇÃO DO ART. 11 DA LEI 8.429⁄92. OFENSA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. CONDUTA QUE NÃO SE ENQUADRA, CONTUDO, NA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. RECURSO NÃO PROVIDO.

1. A Lei de Improbidade Administrativa visa a tutela do patrimônio público e da moralidade, impondo aos agentes públicos e aos particulares padrão de comportamento probo, ou seja, honesto, íntegro, reto. 2. A Lei 8.429⁄92 estabelece três modalidades de improbidade administrativa, previstas nos arts. 9º, 10 e 11, a saber, respectivamente: enriquecimento ilícito, lesão ao erário e violação aos princípios norteadores da Administração Pública. 3. A conduta prevista no art. 9º da LIA (enriquecimento ilícito) abrange, por sua amplitude, as demais formas de improbidade estabelecidas nos artigos subsequentes. Desta maneira, a violação aos princípios pode ser entendida, em comparação ao direito penal, como ‘soldado de reserva’, sendo, aplicada, subsidiariamente, isto é, quando a conduta ímproba não se subsume nas demais formas previstas. 4. De acordo com Francisco Octávio de Almeida Prado (Improbidade Administrativa, Malheiros Editores, São Paulo, 2001, p. 37), ‘A improbidade pressupõe, sempre, um desvio ético na conduta do agente, a transgressão consciente de um preceito de observância obrigatória’. 5. A improbidade  administrativa, ligada ao desvio de poder, implica a deturpação da função pública e do ordenamento jurídico; contudo, nem toda conduta assim caracterizada subsume-se em alguma das hipóteses dos arts. 9º, 10 e 11 da LIA.6. Nesse sentido, Arnaldo Rizzardo (Ação  Civil Pública e Ação de Improbidade Administrativa, GZ Editora, 2009, p. 350): ‘Não se confunde improbidade com a mera ilegalidade, ou com uma conduta que não segue os ditames do direito positivo. Assim fosse, a quase totalidade das irregularidades administrativas implicariam violação ao princípio da legalidade. (…) É necessário que venha um nível de gravidade maior, que se revela no ferimento de certos princípios e deveres, que sobressaem pela importância frente a outros, como se aproveitar da função ou do patrimônio público para obter vantagem pessoal, ou favorecer alguém, ou desprestigiar valores soberanos da Administração Pública’. 7. In casu, o fato praticado pelos recorridos, sem dúvida reprovável e ofensivo aos interesses da Administração Pública, não reclama, contudo, o reconhecimento de ato de improbidade administrativa, apesar de implicar clara violação ao princípio da legalidade. Assim fosse, todo tipo penal praticado contra a Administração Pública, invariavelmente, acarretaria ofensa à probidade administrativa. 8. Recurso não provido. (REsp 1.075.882⁄MG, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, julgado em 4.11.2010, DJe 12.11.2010.)

A título de reforço: ‘A Lei nº 8.429⁄92 visa a resguardar os princípios da administração pública sob o prisma do combate à corrupção, da imoralidade qualificada e da grave desonestidade funcional, não se coadunando com a punição de meras irregularidades administrativas ou transgressões disciplinares, as quais possuem foro disciplinar adequado para processo e julgamento.” (Nesse sentido: REsp 1.089.911⁄PE, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 17.11.2009, DJe 25.11.2009.)

 Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.

É como penso. É como voto.

MINISTRO HUMBERTO MARTINS

Relator” (destacamos)

 

N o t a s

 

            A decisão ora comentada expõe uma ideia simples: o ato ímprobo pode ser, de fato, uma mera irregularidade. Mas a análise das circunstâncias fáticas de cada caso não é fácil. Aqui, trata-se de indevida cumulação de cargos.

Por um lado, a improbidade administrativa é a conduta imoral e maliciosa praticada pelo agente. Não pode ser tido como ímprobo o ato que não revele a má-fé de quem o pratica. De acordo com Mauro Roberto Gomes de Mattos, somente haverá improbidade quando o responsável agir com dolo: “ímproba é a conduta consciente do agente em atentar contra a moralidade, pela vontade específica de violar a lei. A intenção de fraudar a lei é condição subjetiva indispensável para o presente enquadramento, sob pena de vulgarização do que venha a ser ato de improbidade administrativa, que, como visto, não se caracteriza como toda conduta ilegal, tem que estar presente a devassidão” (O Limite da Improbidade Administrativa. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2004, p. 8. Destacamos).

Por outro lado, a Constituição veda o acúmulo de cargos públicos remunerados, salvo quando se tratarem de dois cargos de professor; um de professor com outro técnico; ou científico e dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde – para o que deve restar demonstrada a compatibilidade de horários entre os cargos (CF, art. 37, XVI, a, b e c).

Segundo o Superior Tribunal de Justiça, “a improbidade administrativa, mais que um ato ilegal, deve traduzir, necessariamente, a falta de boa-fé, a desonestidade (…)” (REsp 480387/SP – Rel. Min. Luiz Fux – DJ de 24.5.04. Destacamos). E, para o Tribunal Regional Federal da 1a Região, “a boa-fé do servidor é sempre presumida, cabendo a administração provar o contrário.” (RO nº 12112129 – Rel. Des. Fed. Plauto Ribeiro – DJ de 4.3.91. Destacamos).

Vale notar que, no caso em apreço, sequer se poderia cogitar de dano ao erário, pois os serviços foram efetivamente prestados. Com isso, demonstrou-se o pleno cumprimento das obrigações inerentes aos cargos que ocupava o agente. Em casos como esse, são sempre cabíveis as lúcidas ponderações do Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal:

É evidente que caso se trate de mover ação de conteúdo meramente reparatório, não precisa o Ministério Público valer-se da ação de improbidade. Há uma pletora de procedimentos e providências previstos na ordem jurídica com essa finalidade. A própria Constituição outorga ao Ministério público a atribuição para ‘promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio-ambiente e outros interesses difusos coletivos‘ (art. 129, III). (…) O que parece absurdo é tentar estabelecer uma equação no sentido de que todo e qualquer ato ilegal imputável à administração pública implica um ato de improbidade de um agente público” (Plenário – ADI 2797/DF – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJe de 19.12.06. Destaques nossos).

 

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