A nulidade da Operação Satiagraha e a coragem de proteger os valores morais da sociedade

 

              Trata-se da decisão que decretou a nulidade integral da Operação Satiagraha, cujas investigações produziram indícios que permitiram ao Ministério Público oferecer acusações contra Daniel Dantas e outras pessoas. A decisão já foi divulgada pela imprensa há vários dias, mas somente agora foi publicada em diário oficial. Veja-se:

“PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. OPERAÇÃO SATIAGRAHA. PARTICIPAÇÃO IRREGULAR,  INDUVIDOSAMENTE COMPROVADA, DE DEZENAS DE FUNCIONÁRIOS DA AGÊNCIA BRASILEIRA DE INFORMAÇÃO (ABIN) E DE EX-SERVIDOR DO SNI, EM INVESTIGAÇÃO CONDUZIDA PELA POLÍCIA FEDERAL. MANIFESTO ABUSO DE PODER.  IMPOSSIBILIDADE DE CONSIDERAR-SE A ATUAÇÃO EFETIVADA COMO HIPÓTESE EXCEPCIONALÍSSIMA, CAPAZ DE PERMITIR COMPARTILHAMENTO DE DADOS ENTRE ÓRGÃOS INTEGRANTES DO SISTEMA BRASILEIRO DEINTELIGÊNCIA. INEXISTÊNCIA DE PRECEITO LEGAL AUTORIZANDO-A. PATENTE A OCORRÊNCIA DE INTROMISSÃO ESTATAL, ABUSIVA E ILEGAL NA ESFERA DA VIDA PRIVADA, NO CASO CONCRETO. VIOLAÇÕES DA HONRA, DA IMAGEM E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. INDEVIDA OBTENÇÃO DE PROVA ILÍCITA, PORQUANTO COLHIDA EM DESCONFORMIDADE COM PRECEITO LEGAL. AUSÊNCIA DE RAZOABILIDADE. AS NULIDADES VERIFICADAS NA FASE PRÉ-PROCESSUAL, E DEMONSTRADAS À EXAUSTÃO, CONTAMINAM FUTURA AÇÃO PENAL. INFRINGÊNCIA A DIVERSOS DISPOSITIVOS DE LEI. CONTRARIEDADE AOS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE, DA IMPARCIALIDADE E DO DEVIDO PROCESSO LEGAL INQUESTIONAVELMENTE CARACTERIZADA. A AUTORIDADE DO JUIZ ESTÁ DIRETAMENTE LIGADA À SUA INDEPENDÊNCIA AO JULGAR E À IMPARCIALIDADE. UMA DECISÃO JUDICIAL NÃO PODE SER DITADA POR CRITÉRIOS SUBJETIVOS, NORTEADA PELO ABUSO DE PODER OU DISTANCIADA DOS PARÂMETROS LEGAIS. ESSAS EXIGÊNCIAS DECORREM DOS PRINCÍPIOS DEMOCRÁTICOS E DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS INSCRITOS NA CONSTITUIÇÃO. NULIDADE DOS PROCEDIMENTOS QUE SE IMPÕE, ANULANDO-SE, DESDE O INÍCIO, A AÇÃO PENAL.

 1.Uma análise detida dos 11 (onze) volumes que compõem o HC demonstra que existe uma grande quantidade de provas aptas a confirmar, cabalmente, a participação indevida, flagrantemente ilegal e abusiva, da ABIN e do investigador particular contratado pelo Delegado responsável pela chefia da Operação Satiagraha.

 2. Não há se falar em compartilhamento de dados entre a ABIN e a Polícia Federal, haja vista que a hipótese dos autos não se enquadra nas exceções previstas na Lei nº 9.883⁄99.

 3. Vivemos em um Estado Democrático de Direito, no qual, como nos ensina a Profª. Ada Pellegrini Grinover, in ‘Nulidades no Processo Penal’, ‘o direito à prova está limitado, na medida em que constitui as garantias do contraditório e da ampla defesa, de sorte que o seu exercício não pode ultrapassar os limites da lei e, sobretudo, da Constituição.’

 4. No caso em exame, é inquestionável o prejuízo acarretado pelas investigações realizadas em desconformidade com as normas legais, e não convalescem, sob qualquer ângulo que seja analisada a questão, porquanto é manifesta a nulidade das diligências perpetradas pelos agentes da ABIN e um ex-agente do SNI, ao arrepio da lei.

 5. Insta assinalar, por oportuno, que o juiz deve estrita fidelidade à lei penal, dela não podendo se afastar a não ser que imprudentemente se arrisque a percorrer, de forma isolada, o caminho tortuoso da subjetividade que, não poucas vezes, desemboca na odiosa perda da imparcialidade. Ele não deve, jamais, perder de vista a importância da democracia e do Estado Democrático de Direito. 

6. Portanto, inexistem dúvidas de que tais provas estão irremediavelmente maculadas, devendo ser consideradas ilícitas e inadmissíveis, circunstâncias que as tornam destituídas de qualquer eficácia jurídica, consoante entendimento já cristalizado pela doutrina pacífica e lastreado na torrencial jurisprudência dos nossos tribunais.

7. Pelo exposto, concedo a ordem para anular, todas as provas produzidas, em especial a dos procedimentos nº 2007.61.81.010208-7 (monitoramento telefônico), nº 2007.61.81.011419-3 (monitoramento telefônico), e nº 2008.61.81.008291-3 (ação controlada), e dos demais correlatos, anulando também, desde o início, a ação penal, na mesma esteira do bem elaborado parecer exarado pela douta Procuradoria da República.”

(STJ – HC 149250/SP – 5ª T. – Rel. Des. Conv. do TJRJ Adilson Vieira Macabu – DJe de 5.9.11)

 

Do extenso acórdão, colacionam-se os seguintes fundamentos:

O EXMO. SR. MINISTRO ADILSON VIEIRA MACABU (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ⁄RJ) (Relator):

Cuidam os autos de procedimentos adotados pela Polícia Federal durante a colheita de provas da conhecida Operação Satiagraha.

É fato público e notório que se trata de uma operação que investigou possíveis crimes de desvio de verbas públicas, corrupção e lavagem de dinheiro, desencadeada em princípios de 2004 e que resultou na prisão – posteriormente revogada, determinada pela 6ª Vara da Justiça Federal em São Paulo, de vários banqueiros, diretores de banco e investidores, em 8 de julho de 2008, dentre eles DANIEL VALENTE DANTAS, o ora paciente.

Os impetrantes visam, basicamente, com este habeas corpus, a nulidade dos procedimentos de monitoramento telefônico, telemático e ação controlada que resultaram em ação penal instaurada contra o paciente, ao argumento que eles decorreriam de provas ilícitas.

Como dito alhures, sustentam, em apertada síntese, que, no caso concreto, resta cabalmente demonstrada a atuação clandestina e ilegal da ABIN – AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA e de um investigador particular – que teria sido contratado pelo então Delegado responsável pelas investigações da Operação Satiagraha, realizando vários atos típicos de Polícia Judiciária, que resultaram num conjunto de provas ilícitas, em flagrante violação a diversos dispositivos legais.

Asseveram que “a atuação da ABIN está a serviço exclusivo dos interesses da Presidência da República – e não de outro Poder, órgão ou funcionário da administração pública. De modo algum, portanto, pode-se compreender que suas atribuições englobem a prática de atos típicos de Polícia Judiciária, seja porque (a) ausente previsão legal nesse sentido, seja porque (b) o destinatário de suas atividades (o Presidente da República) é absolutamente diverso do destinatário de qualquer investigação criminal (Ministério Público)” (STJ fls. 19 – vol. 01) (grifos no original)

Aduzem, ainda, que as consequências processuais dessa alegada atuação clandestina e ilegal da ABIN e do investigador particular redundam na nulidade da investigação criminal que resultou em ação penal e inquérito policial, em trâmite perante a 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, vez que as provas carreadas aos já mencionados processos estariam contaminadas pela ilicitude, quando de sua colheita.

Concluem que a eg. 5ª Turma do Tribunal Federal Regional da 3ª Região, ao deixar de reconhecer a atuação da ABIN e de investigador particular na investigação criminal, contrariou os arts. 1º, III, 5º, X, XII, LVI, 144, § 1º, IV, todos da Constituição Federal, bem como os arts. 4º e 157, ambos do Código de Processo Penal.

Com razão os impetrantes.

(…)

Data maxima venia, feita uma análise acurada dos autos, diga-se de passagem, dos 11 volumes que compõem o caso, é possível verificar que existe uma grande quantidade de provas aptas a confirmar, cabalmente – a meu ver, a participação  indevida e flagrantemente ilegal da ABIN e do investigador particular contratado pelo Delegado Protógenes Queiroz. Dentre o farto material acostado aos autos, podemos destacar alguns documentos:

– cópia do Ofício enviado pelo Dr. Daniel Lorenz de Azevedo (então Diretor de Inteligência Policial da Polícia Federal) encaminhando ao Dr. Amaro Vieira Ferreira (também delegado da Polícia Federal e responsável pelo Inquérito Policial nº 2-4447⁄2008, que apurava possível violação de sigilo profissional no decorrer da Operação Satiagraha) cópias de 3 (três) recibos em nome de Francisco Ambrósio do Nascimento, localizados no bojo da prestação de contas do processo nº 08200.001332⁄2008-22, o qual tem como suprido o DPF Protógenes Pinheiro de Queiroz, ex- coordenador da Operação Satiagraha – fls. 1.460 v⁄1.462, vol. 6 dos autos.

– ofício enviado pelo delegado Dr. Glorivan Bernardes de Oliveira ao Dr. Amaro Vieira Ferreira , confirmando que o Sr. Márcio Seltz – servidor da ABIN, esteve noComplexo Administrativo Sudoeste, local para onde foi transferido o efetivo da Operação Satiagraha – fls. 1.408-v⁄1.409, vol. 6 dos autos.

– carta enviada pelo Dr. Paulo Fernando da Costa Lacerda ao Dep. Nelson Pellegrino – Relator da CPI das Escutas Telefônicas Clandestinas, comprovando a participação de agentes da ABIN na Operação Satiagraha – fls. 2.210⁄2.224 – vol. 9.

– ofício prestando informações, enviado pelo Dr. Amaro Vieira Ferreira ao Procurador da República Dr. Roberto Antônio Dassiê Diana, em 12⁄03⁄09, no qual se lê: “nessa linha investigativa verificou-se que servidores da Agência Brasileira de Inteligência – ABIN e um ex-servidor, por iniciativa do Delegado Protógenes Queiroz, sem autorização judicial e sem qualquer formalização, foram introduzidos ocultamente nos trabalhos da operação Satiagraha, tomaram conhecimento de dados que estavam sob sigilo, e, seguindo comando daquela autoridade e de outros servidores a ela subordinados, realizaram trabalhos de vigilância, acompanhamento de alvos, registros fotográficos, filmagens, gravações ambientais, análise de documentos igualmente sigilosos, geraram relatórios e produziram transcrições a partir da audição de gravações de conversações telefônicas interceptadas pelo sistema guardião, em situação que ultrapassa qualquer limite de entendimento de que fosse simples atuação pontual com troca de dados de inteligência entre órgãos integrantes do Sistema Brasileiro de Inteligência – SISBIN, cuja razão de existir e finalidade de atuação, diferem diametralmente daquelas correspondentes à Polícia Judiária da União.” (fls. 2.274 – vol. 09)

– às fls. 2.342⁄2.385-v, vol.10 dos autos, encontra-se o relatório oriundo do inquérito policial, instaurado em 24⁄07⁄08 e relatado em 07⁄04⁄09, no qual o Delegado Amaro Vieira Ferreira apresenta, detalhadamente, ao Ministério Público Federal o resultado das investigações que confirmam a participação indevida da ABIN e de investigador particular na Operação Satiagraha. Trata-se de um longo relatório, mas peço vênia para transcrever 2 trechos que me parecem relevantissímos para o desfecho dessa decisão.

No que tange à participação de investigador particular, contratado pelo Dr. Protógenes Queiroz, o relatório consigna, expressamente, que:

“…omissis…

A participação de terceiro é confirmada pelo depoimento de FRANCISCO AMBRÓSIO DO NASCIMENTO (fls. 795⁄808), aposentado, ex-servidor da ABIN, que relata as circunstâncias de seu chamamento para execução de trabalhos de interesse da operação, confirmando que tivera acesso a informações sigilosas do bojo da operação.” (fls. 2.365 – vol 10)

 Por sua vez, no verso da fl. 2.383, destaca-se, verbis:

“…omissis…

Desse modo, conclui-se que, restou evidenciado desrespeito ao disposto no artigo 8º  e conseqüente infração ao disposto na segunda parte, do artigo 10, da Lei nº9.296, de 24 de julho de 1996, uma vez que em relação a atuação dos servidores da ABIN, constatou-se completo desvio de finalidade, tendo ocorrido paraaqueles servidores, que assim atuaram, repasse de dados que estavam sob segredo de justiça em procedimento judicial de interceptação de comunicações telefônicas, autorizada especificamente para fazer prova em investigação criminal e em instrução processual penal, conforme dispõe o artigo 1º da Lei 9.296⁄96, que regulamentou o inciso XII, parte final, do artigo 5º, da Constituição Federal, situação que determinou o indiciamento dos policiais WALTER GUERRA SILVA (fls. 2124⁄21270, ROBERTO CARLOS DA ROCHA (fls. 2215⁄2218) e EDUARDO GARCIA (fls. 2630⁄2634), além do delegado PROTÓGENES QUEIROZ (fls. 2630⁄2634), por infração ao disposto na segunda parte, do artigo 10, da Lei 9.296, de 24 de julho de 1996, sendo eles individualmente qualificados e interrogados, de modo geral se recusaram a responder aos questionamentos, optando pelo direito de fazê-lo somente na justiça”  (grifos no original)

 (…)

Feitas essas considerações, passo à análise do mérito do presente writ.

(…)

Dentro desse contexto, delimitado pela Constituição Federal, entendo que a atividade investigatória deve ater-se aos ditames fixados. Apenas em casos excepcionalíssimos e desde que preenchidos os requisitos legais do art. 4º, parágrafo único, do Código de Processo Penal, permitir-se-á que essa atividade seja exercida por órgão diverso da Polícia Judiciária. (…)

Da simples leitura dos acima mencionados dispositivos legais, pode-se concluir que a atuação da ABIN se limita às atividades de inteligência que tenham como finalidade precípua e única fornecer subsídios ao Presidente da República nos assuntos de interesse nacional.

E mais. Não há qualquer possibilidade de se caracterizar a participação da ABIN e de ex-servidor do SNI com o intuito de ‘mero compartilhamento de informações’, como consignado no acórdão vergastado, especialmente, porque o próprio acórdão é categórico ao afirmar que esse compartilhamento de informações de dados é admitido em casos excepcionais ‘a situações nas quais haja interesse do estado brasileiroconforme simples leitura da ementa no item nº 5.

Sendo público e notório que o presente writ teve origem em processos investigatórios de possíveis delitos de desvio de verbas públicas, corrupção e branqueamento de capitais, como dizem os portugueses, indaga-se: onde reside o interesse nacional na apuração de tais crimes?

Vivemos em um Estado Democrático de Direito regido por um conjunto de leis que disciplinam e estabelecem os comportamentos permitidos ou proibidos, visando como finalidade principal a tranquilidade pública e garantindo a convivência harmônica dos mais variados grupos sociais. Dentro desse conjunto de normas, destaca-se o Princípio da Legalidade, consagrado em nossa Constituição no art. 5º, inciso II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

(…)

Ora, se uma lei determina, expressamente, frise-se bem, as funções e o modus operandi da ABIN, não é aceitável que tais limitações sejam extrapoladas, ainda mais, porque o rol de funções disposto na Lei não permite uma interpretação elástica e em desconformidade com o espírito do legislador.

Não se pode admitir que em um Estado Democrático de Direito, à margem da lei e de vários Princípios consagrados, como o da legalidade, do devido processo legal e da impessoalidade, se corrobore com o direcionamento e, por que não dizer, com o complô, de uma investigação criminal que ultrapassou todos os limites legais, tornando-se, ouso dizer, uma querela pessoal para incriminar determinada pessoa, valendo-se, para tanto, do uso efetivo de agentes da ABIN e até de um ex-servidor do finado SNI, por parte da autoridade administrativa, em induvidoso e inaceitável desvio de poder, maculando todo e qualquer ato administrativo ou investigativo praticado.

E mais. O Delegado Protógenes Queiroz, encarregado de chefiar as investigações da Operação Satiagraha, até por dever de ofício, deveria atuar nos estritos limites da legislação vigente e dentro dos Princípios já mencionados, especialmente, o da Impessoalidade. (…)

Por todas essas considerações, parece-me  que está claramente demonstrado que: (i) não é função da ABIN investigar possíveis crimes que não tenham qualquer conexão com assuntos de interesse nacional, como no caso concreto e (ii) é inadmissível a participação de um investigador particular contratado diretamente pelo Delegado encarregado de chefiar a operação e pago com dinheiro público, o que nos leva a uma única e possível conclusão: a ABIN extrapolou suas funções ao participar das investigações da Operação Satiagraha.

(…)

Por estas razões, tenho que todas as provas colhidas por agentes da ABIN e pelo investigador particular contratado indevidamente,  no curso da operação, são ilícitas. Podemos definir prova ilícita como sendo aquela obtida com violação de regra ou princípio constitucional. Em relação às provas ilícitas, nosso ordenamento jurídico adotou o sistema da inadmissibilidade das obtidas por meios ilícitos, ou seja, toda e qualquer prova nessa situação não poderia, em tese, sequer, ingressar nos autos, conforme o disposto nos arts. 5º, LVI, da Constituição Federal e 157, do Código de Processo Penal. E, na hipótese de vir a acontecer, ela deve ser excluída (exclusionary rules). (…)

Uma vez reconhecida a ilicitude das provas colhidas, necessário verificar os desdobramentos  daí advindos. A Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada (The fruit of the poisonus tree) teve origem na Suprema Corte Americana, que adotou o entendimento de que os vícios da ‘árvore são transmitidos aos seus frutos‘, ou seja, havendo uma origem ilícita, como in casu, uma investigação eivada de inconstitucionalidade, toda a prova dela decorrente, mesmo que não ilícita em si, não poderá ser admitida, pois já estaria contaminada.

Aliás, o § 1º, do art. 157, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei nº 11.690⁄08, admite a adoção da Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada, ressalvando a hipótese de não se comprovar o nexo de causalidade entre as provas derivadas e as ilícitas ou caso as derivadas possam ser obtidas por intermédio de uma fonte diversa das ilícitas. (…)

Assim, não há outro caminho a não ser a descontaminação da investigação, expurgando dos autos todos os elementos colhidos em desconformidade com a lei. Em decorrência dos desmandos e abusos praticados, as provas obtidas por meios ilícitos, circunstância plenamente evidenciada, não podem mais figurar nos autos do processo, sendo certo que a Constituição de 88 as repudiou, na dicção contida em seu art. 5º, LVI, ao estatuir como cláusula pétrea o princípio de que ‘são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos‘. Portanto, estamos diante de garantia que integra o postulado do devido processo legal, que exige, na apuração da prática de uma infração penal e de sua autoria, a observância da forma legalmente prescrita na norma jurídica. (…)

Gostaria de registrar, antes de finalizar o voto, que não se trata de mais um caso rumoroso que ficou impune. Não! Na realidade, os eventuais delitos cometidos pelo ora paciente podem e devem ser investigados e, se comprovados, julgados, desde que observados SEMPRE E EM QUALQUER CASO, a legalidade dos métodos empregados na busca da verdade real, respeitando-se o Estado Democrático de Direito e os Princípios da Legalidade, da Impessoalidade e do Devido Processo Legal.

No caso em exame, é inquestionável o prejuízo acarretado pelas investigações realizadas em desconformidade com as normas legais, e não convalescem, sob qualquer ângulo que seja analisada a questão, porquanto é manifesta a nulidade das diligências perpetradas pelos agentes da ABIN e um ex-agente do SNI, ao arrepio da lei.

Insta assinalar, por oportuno, que o juiz deve estrita fidelidade à lei penal, dela não podendo se afastar a não ser que imprudentemente se arrisque a percorrer, de forma isolada, o caminho tortuoso da subjetividade que, não poucas vezes, desemboca na odiosa perda da imparcialidade. Num estado de direito efetivo e verdadeiro, o magistrado deve julgar sem paixões e em absoluta sintonia com a estrutura normativa existente, mesmo porque não lhe cabe legislar, mas apenas aplicar as regras elaboradas por outro poder, o legislativo, que na sistemática adotada pela nossa Constituição Federal, no seu art. 2°, também goza de independência, consoante a lição advinda do princípio da separação de poderes.

Ora, se todos são iguais perante a lei, em consonância com o princípio da isonomia insculpido no art. 5º da Lei Maior, não se pode aceitar que uma investigação manipulada, realizada a lattere, discriminatória em sua essência e inspirada em interesses ilegítimos, tais como motivações políticas e eleitoreiras, possa gerar consequências desastrosas, atingindo a liberdade das pessoas e as garantias processuais, independentemente de quem esteja sendo processado e da natureza da infração penal atribuída ao paciente.

Assim, no caso em exame, induvidoso que as investigações efetivadas pela ABIN, fora de suas atribuições legais elencadas e limitadas, expressamente, no art. 4º, da Lei 9.883⁄99, em verdadeira usurpação de suas funções e com indisfarçável desvio de poder, na medida em que foi contratado um ex-agente do SNI para realizar atos próprios da polícia judiciária e, o que é mais grave, pago com verbas secretas, ou seja, dinheiro público, sem previsão legal para tanto, constituem uma das mais graves violações ao Estado Democrático de Direito. Portanto, inexistem dúvidas de que as referidas provas estão irremediavelmente maculadas, devendo ser consideradas ilícitas e inadmissíveis, circunstâncias que as tornam destituídas de qualquer eficácia jurídica, consoante já demonstrado acima pela doutrina pacífica e lastreada na torrencial jurisprudência dos nossos tribunais.

À evidência, não há como embasar uma denúncia ou a formação do convencimento do juiz para uma prestação jurisdicional revestida da indispensável imparcialidade inerente a todos que exercem, com grandeza e dignidade, a nobre missão de julgar, sem subjetivismos ou tendências ideológicas que não condizem com o verdadeiro sentimento de justiça. Jamais presenciei, eminentes Ministros, ao defrontar-me com um processo, tamanho descalabro e desrespeito a normas constitucionais intransponíveis e a preceitos legais.

Pelo exposto, concedo a ordem para anular, todas as provas produzidas, em especial a dos procedimentos nº 2007.61.81.010208-7 (monitoramento telefônico), nº 2007.61.81.011419-3 (monitoramento telefônico), e nº 2008.61.81.008291-3 (ação controlada), e dos demais correlatos, anulando também, desde o inícioa ação penal, na mesma esteira do bem elaborado parecer exarado pela douta Procuradoria da República. É como voto.

VOTO

(MINISTRO NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO):

(…)

4. Contudo, Senhor Presidente, parece fora de dúvida que a indispensável tarefa de coleta desses dados ou elementos indiciáveis de crimes somente se pode realizar, sob pena de invalidade, com a observância de regras imperativas, cuja infração torna juridicamente desvalioso o árduo e difícil trabalho de sua identificação e coleta, independentemente de quais sejam os resultados apurados. Senhor Presidente, nesse caso, tenho como induvidosa, em face do voto do eminente Ministro Relator, a participação de servidores da ABIN na operação policial de que se trata. Verifico também um esforço imenso para se legitimar a posteriori essa participação, chegando-se até mesmo, surpreendentemente, a assemelhar a ABIN ao Ministério Público, no que tange ao poder de investigar. Com isso, não posso de maneira alguma concordar; sei que não se pode evitar os abusos, mas se pode combatê-los e o combate eficaz é a nulificação do seu resultado. (…)7. Agradeço a V. Exa e acompanho o voto do Senhor Ministro Adilson Vieira Macabu, concedendo a ordem de habeas corpus.

  

VOTO-DESEMPATE

O SENHOR MINISTRO JORGE MUSSI (PRESIDENTE): 

(…)

Não tenho dúvidas de que a Abin, em uma operação compartilhada, poderia participar das investigações da Operação Satiagraha. Contudo deveria atuar mediante autorização judicial e desde que formalmente requisitada. O que não pode é, em um Estado Democrático de Direito, a Agência de Inteligência agir na ilegalidade, na clandestinidade e de forma oculta. O que não pode é que com esse arremedo de prova, colhido de forma impalpável como sombra, se possa chegar a uma condenação.

Não há lugar maior para o extravasamento dos ódios e dos rancores que uma ação penal ancorada em prova colhida na clandestinidade. Essa volúpia desenfreada de se construir pseudo-provas acaba por ferir de morte a Constituição do País.

É preciso que se dê um basta, colocando-se freios inibitórios antes que seja tarde. Estou a repetir: antes que seja tarde! (…)

Nesse contexto, se a prova que deu origem a persecutio criminis in judicio é natimorta, eis que viciada, é preferível que passemos, desde logo, o competente atestado de óbito, para que amanhã não seja usada contra qualquer outro cidadão.

Coitado do país em que seus filhos vierem a ser condenados com prova colhida na clandestinidade. Não podemos! Temos que dar um basta nisso, até porque há limites. A Constituição Federal assim o determina! Afirmar-se que a prova colhida na clandestinidade não contamina a instrução, com todas as vênias, seria subversão do ordenamento jurídico brasileiro.

O Supremo Tribunal Federal já proclamou o reconhecimento da ‘Teoria dos frutos da árvore envenenada’ (fruits of the poisonous tree) em aresto da lavra do Sr. Ministro Sepúlveda Pertence, ou seja, havendo uma origem ilícita, como na espécie, uma investigação eivada de inconstitucionalidade, toda a prova dela decorrente, mesmo que não ilícita em si, não deve ser admitida.

(…)

Ante o exposto, formei minha convicção, em sã consciência, como costuma dizer a Ministra Laurita Vaz, até porque o voto é um exercício de confiança: não posso admitir, em hipótese alguma, que a prova ilicitamente produzida seja usada contra um cidadão do meu País para, desrespeitando a Constituição Federal, buscar sua condenação.

Nesta esteira, lembro-me de um grande jurista que certa feita disse: ‘A Justiça não é bela apenas quando manuseia o Código que a aplica, mas é bela, sim, e chega a ser até grandiosa, quando mergulha nas profundezas e na razão moral dos fatos que julga. Assim, pela razão moral do fato que estou a julgar, pedindo vênia à divergência, e citando a lição de Gaspar Martins – de que as idéias não são como metais que se fundem, daí a importância do órgão colegiado -, acompanho o brilhante voto do eminente Ministro relator Adilson Vieira Macabu, no sentido de conceder a ordem de habeas corpus. É como voto.” (destacamos)

 

N o t a s

 

            Acompanhou-se, recentemente, a decisão do STJ que anulou, desde o início, a ação penal que havia culminado na condenação, em 1ª instância, do banqueiro Daniel Dantas. Dentre as ilegalidades apontadas pela defesa, a mais contundente foi a participação clandestina de agentes da ABIN (Associação Brasileira de Inteligência) e de um investigador particular – contratado pelo próprio Delegado então responsável pelo caso – na apuração, que somente poderia ser realizada pelos órgãos públicos competentes. Tais diligências deram origem a outros indícios – igualmente nulos, porque derivaram de atos investigativos ilegais. O próprio Ministério Público Federal oficiante junto à Corte recomendou a anulação.

            Dentre todos os fundamentos a favor da decisão tomada, sobressaem os seguintes, consignados no voto do Magistrado Adilson Vieira Macabu: “não se trata de mais um caso rumoroso que ficou impune. Não! Na realidade, os eventuais delitos cometidos pelo ora paciente podem e devem ser investigados e, se comprovados, julgados, desde que observados SEMPRE E EM QUALQUER CASO, a legalidade dos métodos empregados na busca da verdade real, respeitando-se o Estado Democrático de Direito e os Princípios da Legalidade, da Impessoalidade e do Devido Processo Legal. (…) O juiz deve estrita fidelidade à lei penal, dela não podendo se afastar a não ser que imprudentemente se arrisque a percorrer, de forma isolada, o caminho tortuoso da subjetividade que, não poucas vezes, desemboca na odiosa perda da imparcialidade. (…) Jamais presenciei, eminentes Ministros, ao defrontar-me com um processo, tamanho descalabro e desrespeito a normas constitucionais intransponíveis e a preceitos legais” (destacamos).

            Ao contrário do que pode ser levada a crer a opinião pública, a decisão tomada pelo STJ é a única que atende à Constituição e à legislação federal brasileiras. Por isso, é uma decisão não apenas ética e de acordo com a noção madura de democracia que já se deveria encontrar em nosso país, mas é, também, uma decisão moralizante. É preciso coragem para firmar tal posição, porque, caso ela negasse a pretensão da defesa, o público aplaudiria. Lamentavelmente, a maioria não julga com a razão, mas com a paixão. E o Judiciário, como pode compreender quem se interesse, julga de forma contramajoritária – o que significa que as suas determinações devem ser jurídicas e não populares.

            Independentemente disso, a leitura do acórdão pode ser muito esclarecedora para quem ainda ostenta a cômoda, inquisitiva e demagoga opinião de que as condenações, no Brasil, não precisam respeitar a lei. É preciso que se entenda que a defesa da legalidade em processos contra os outros é a defesa da legalidade em eventuais processos contra nós mesmos e/ou contra pessoas de quem gostamos. Defender um direito público não é defender um direito alheio.

            O acórdão acima está absolutamente bem fundamentado, expondo todos os fatos retratados nos autos e ampla fundamentação literária e jurisprudencial. Os dispositivos legais pertinentes foram todos considerados. Além disso, a Corte levou em conta a grande repercussão do caso. O Min. Napoleão Nunes Maia Filho, p.ex., ressaltou que a atuação do Estado “somente se pode realizar, sob pena de invalidade, com a observância de regras imperativas, cuja infração torna juridicamente desvalioso o árduo e difícil trabalho de sua identificação e coleta, independentemente de quais sejam os resultados apurados” (destacamos).

            O Min. Jorge Mussi, em seu voto, ponderou que “não há lugar maior para o extravasamento dos ódios e dos rancores que uma ação penal ancorada em prova colhida na clandestinidade. Essa volúpia desenfreada de se construir pseudo-provas acaba por ferir de morte a Constituição do País.” E sentenciou: “coitado do país em que seus filhos vierem a ser condenados com prova colhida na clandestinidade. Não podemos! Temos que dar um basta nisso, até porque há limites. A Constituição Federal assim o determina!” (destacamos). Assim o fez com base justamente na “razão moral do fato“.

            Assim oficiando, o Superior Tribunal de Justiça, por sua 5ª Turma, consumou a sua missão, renovou sua importância e, ao jurar respeito aos valores constitucionais de sua nação, perseverou em seu dificílimo dever de prover justiça e contribuiu, simultaneamente, para a maior difusão de princípios como a inadmissibilidade de provas ilícitas, devido processo legal e, acima de tudo, a dignidade da pessoa humana.

 

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