Charles Dickens e a opção pelos pobres

Ebenezer Scrooge. Este nome lhe é familiar, leitor? Não é para menos. Estamos falando de Um Conto de Natal (Charles Dickens), a mais conhecida história de Natal de todos os tempos, da qual Scrooge é o personagem central. Não é ele propriamente. O gênio literário de Dickens tornou como ponto central aquilo que Scrooge representa: usura, mesquinhez, avareza, inveja… O velho pão duro é um caso raro da concentração de muitos dos pecados capitais.

Este ano achei uma edição de bolso da L&PM num sebo aqui perto do jornal. Uma pechincha, diria o sovina Scrooge: apenas R$ 10. É uma edição bonitinha, bem impressa, com ilustrações em preto e branco, que ajudam o leitor a viajar ainda mais na história. Acho que as figuras são dispensáveis. A história é tão rica e a prosa de Dickens é tão envolvente, que quando a gente a vê já está navegando pelas fascinantes experiências de Scrooge. Faço a releitura devagar, já conheço bem a história, mas não importa. Caminho com Scrooge até o final. Que final é este? Não conto! Tem muita gente que ainda não leu o livro. Já viu o filme, mas não leu. E no livro é outra história: não tem a pasteurização e os efeitos especiais das bem executadas produções de Hollywood. No livro é preto no branco como Dickens gostava.

Uma das razões que pode explicar isso é que o escritor sofreu na pele o que era ser pobre na Inglaterra da Era Vitoriana dos anos 1800s. O pai foi preso por não pagar dívidas, fruto das distorções de um sistema doente e do dia para a noite Dickens teve que trabalhar numa fábrica de graxa de sapatos, colando rótulos nas embalagens. O salário era mensurado em xelins, uma miséria. Depois, a situação do pai melhorou com o recebimento de uma herança, mas a mãe não permitiu que ele deixasse o emprego e o escritor nunca a perdoou por isso.

Paradoxalmente, o emprego que Dickens odiava lhe deu o combustível poderoso para suas obras, um diferencial que o distinguiu dos seus pares. Ele foi um dos introdutores da crítica social na literatura. Ao conviver com a classe trabalhadora, que vivia num regime de semiescravidão, o olhar privilegiado do escritor captou os efeitos da exploração da “mais valia” sobre os pobres, ao mesmo tempo em que a monarquia se mostrava divorciada do povo mais humilde.

Teria Dickens conhecido a pessoa que inspirou Scrooge nesta fábrica? Ninguém sabe. Mas o fato é que o escritor não se calou diante da miséria. Deixou a famosa “fleuma” inglesa de lado e colocou a sua poderosa pena para narrar as barbaridades. Foi um sucesso. Já dizia Tolstoi, ‘canta a tua aldeia e serás universal‘.

Um Conto de Natal foi publicado pela primeira vez em 1843 e sua mensagem ecoa até hoje por se tratar de um tema atualíssimo. As relações de trabalho até que evoluíram na maior parte do globo, mas frequentemente se noticia trabalhadores vivendo em condições análogas à escravidão. O sistema capitalismo produziu riquezas, mas também ajudou a gerar desigualdades brutais e perpetuar a fome no mundo.

E Dickens foi além: pregou o renascimento do homem. Para ele, as pessoas não nascem ruins: em que elas vão se tornar depende muito das escolhas que forem tomadas no curso da vida. O importante é que sempre há chance de mudar. Nunca é tarde demais: basta querer. É puro espírito natalino!

*Miguel Ângelo de Andrade publica a coluna ‘Pelas ruas da cidade’ durante as férias de Edilson Pereira.