A história da cicatriz

“Estão vendo isso aqui”?, apontava para o lábio superior. Havia uma cicatriz considerável, um corte vertical feito por objeto contundente. Cássio era o dono da cicatriz e também o dono da bola. Não só porque tinha intimidade com a pelota – era um atacante endiabrado, duro de marcar no futebol de salão -, e além de tudo batia bem quando rolavam as brigas.

O negrão era falante, alto, com físico reforçado, gostava de trocar ideia com todo mundo, mas era ruim de debater alguma coisa com ele, sobretudo quando os argumentos o derrubavam. O cara já falava alto naturalmente e quando confrontado aí a voz se tornava ainda mais estridente, franzia a testa e lançava olhares insanos. O contendor geralmente capitulava.

Mas em geral Cássio era gente boa. Surfava na reputação do cara “boca quente” e se dizia amadurecido. Para mostrar o quanto tinha evoluído, gostava de contar a história de como conseguiu a cicatriz no lábio. – Vocês conhecem o Kiko?, indagou ao grupo de adolescentes, que se amontoava na esquina em noites quentes de verão para ouvir suas histórias. Todos assentiram que sim. Kiko era um homem que perambulava pelas ruas da cidade. De baixa estatura, barbudo e estava sempre de chapéu.

Mas o que o distinguia era um tremelique incessante, fruto de algum problema neurológico que ninguém sabia explicar qual era a causa. Parkinson? Pode ser, mas no caso do Kiko a doença não evoluía. Com esta condição, Kiko vivia da caridade das pessoas. Com isso montou a sua casinha, arranjou uma companheira e tocava o barco.

Anos atrás quando era adolescente, Cássio tinha sido vizinho de Kiko. Um dia calhou de Cássio ajudar a mulher de Kiko a carregar as compras para dentro de casa. A gentileza aproximou-os e a mulher acabou se afeiçoando pelo rapazote. Um dia cedeu aos seus avanços e passaram a se encontrar todo dia. Bastava o Kiko sair, que Cássio entrava em cena. Um dia os amantes acabaram perdendo a hora e foram surpreendidos por Kiko. Ele teve a mesma reação da maioria dos maridos traídos: deixou o tremelique de lado e partiu para briga. Usou um cabo de vassoura cerrado, furado numa ponta. Ali ele passou uma alça feita com cabo elétrico, o que fazia com que ele ficasse pendurado no pulso. De posse de seu cassetete improvisado, atacou Cássio desferindo um golpe com muita força. O negrão se esquivou, mas mesmo assim a ponta partiu o lábio. Foi sangue para todo lado! Irado, Cássio desferiu um direto de direita, que pegou no peito de Kiko e parou por aí porque ficou assustado com o que viu. Esparramaram-se pelo chão umas coisas moles, que pareciam carnes e Cássio tratou de cair fora. Logo depois soube que Kiko estava “inteiro”. O seu golpe havia acertado uma sacola de miúdos de boi que Kiko ganhou no açougue e a trazia junto ao corpo, presa no pescoço. Com a pancada, a sacola estourou e os bofes bovinos foram para todo lado.

Cássio não sabia se ria ou chorava ao ver a dimensão do estrago no rosto. O problema era o que dizer aos pais. Mentiu que foi vítima de um zagueiro truculento na pelada. Tudo bem que a pelada era outra! Naquele dia, aprendeu na prática a lição de que as aparências enganam, mas resolveu deixar a história para lá. O Kiko que ficasse com os cornos e ele com a cicatriz. Era uma troca justa no seu ponto de vista. E a piazada que ouviu tudo atentamente concordou sem pestanejar. Naquele tempo, ninguém era besta de bater de frente com o Cássio.

*Miguel Ângelo de Andrade publica a coluna ‘Pelas ruas da cidade’ durante as férias de Edilson Pereira.