Barbárie: o perigo mora em casa

A barbárie cometida por Andréia de Freitas, 27 anos, contra a enteada Gabriela Moreira dos Santos, 7, matando-a com 96 facadas na última segunda-feira, reforça a triste realidade que vem sendo constatada pela polícia: a maioria dos crimes contra crianças e adolescentes é cometida por familiares ou pessoas do convívio íntimo delas. Desde outubro do ano passado, quando o Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente (Nucria) foi criado, até maio deste ano, foram registrados 31 casos de lesão corporal ocorridos em ambiente familiar. Deste total, 48% das agressões foram cometidas pelos pais, 42% pelas mães e 10% por padrastos, madrastas ou conhecidos.

Além deste crime, o Nucria constatou que maus tratos é outra violência freqüente nos lares. No mesmo período o órgão registrou 20 casos, dos quais 11 foram as mães as agressoras, e 6 os pais. Nessas situações, foram utilizados os mais diversos objetos, que vão desde cabide, cinta, panela de pressão e até fio de luz e cigarro.

Violência sexual

Mas é o atentado violento ao pudor que está em primeiro lugar na lista de crimes cometidos contra crianças e jovens até 17 anos. Nos últimos dois meses, o Nucria registrou a morte de dois bebês que sofreram violência sexual. No dia 3 de agosto, uma menina de um ano e quatro meses morreu no Hospital Pequeno Príncipe, com ferimentos na região do ânus, cegueira e com sinais de subnutrição. De acordo com a delegada Ana Cláudia Machado, a polícia ainda aguarda o laudo do Instituto Médico-Legal para saber a causa da morte, apesar de já haver confirmação que a criança teve lacerações no ânus causadas pela introdução de pênis ou de um objeto com a mesma espessura. "Temos quatro suspeitos. Um deles é o parente da dona da casa, onde a mãe da menina, uma adolescente de 16 anos, estava hospedada. O indivíduo, que sofre de problemas mentais, trocou de roupa no mesmo quarto onde a criança dormia. Por causa de sua debilidade mental não conseguimos interrogá-lo. Vamos aguardar o laudo para saber se foi possível coletar amostras de sangue ou de sêmen no corpo da criança, para depois confrontá-las com as dos outros suspeitos, que também conviviam com a menina", disse a delegada.

No dia 7 de julho, um bebê de sete dias morreu por uma infecção, resultante de escoriações no ânus. Acusados de abusar sexualmente do filho recém-nascido, o assessor parlamentar Nilson Moacir Oliveira Cordeiro, 31 anos, e a secretária Any Paula Fascollin, 29, foram presos dias depois. O inquérito policial foi encerrado e encaminhado ao Ministério Público, que já ofereceu a denúncia, acatada pela Justiça. O casal está detido no Complexo Médico- Penal, em Piraquara.

Dos 64 casos de atentado violento ao pudor registrados pelo Nucria até maio deste ano, 13 foram cometidos pelo pai da vítima. Já dos 26 estupros computados no mesmo período, o padrasto foi o responsável em sete casos.

"Diariamente atendemos situações de violência contra crianças e adolescentes, na grande maioria das vezes sempre causadas por indivíduos em que as vítimas confiam, ou seja, familiares e pessoas de seu convívio. Infelizmente, apenas uma minoria das ocorrências chega a nosso conhecimento, uma vez que a maioria esmagadora tem medo de denunciar os agressores", finalizou a delegada.

"Minha filha tinha garra pra viver"

"Eu quero me encontrar com Andréia e ter a certeza que ela vai pagar pelo que fez. Quero saber o que sentiu, com um filho no ventre, ao esfaquear minha filha, uma criança inocente e que sempre teve tanta garra para viver." É com sede de justiça que a mãe de Gabriela Moreira dos Santos, 7 anos – Maria José Rodrigues Moreira, 36 – está encontrando forças para superar o trauma de enterrar a filha, a quem tanto ajudou na luta pela vida.

Inconformada com a tragédia, a empregada doméstica garante que não voltará para sua cidade natal – Arapoti – até ter a certeza que a assassina de sua filha, Andréia de Freitas, 27, será punida. "Eu vim morar em Curitiba por causa do tratamento de Gabriela, que tinha problemas renais, e é por ela que continuarei aqui. Só vou embora depois do julgamento dessa mulher, apesar de saber que a maior das justiças é a divina. Para mim ela é um monstro, pois a minha filha, mesmo sempre sentido dor, nunca se entregou à doença. Passei noites em claro preocupada com a saúde dela para essa mulher tirar sua vida dessa maneira. Eu quero saber o que ela vai sentir quando esse filho que está esperando nascer e o que vai ser da vida desta criança", desabafou Maria José.

Tristeza

As diversas fotos da garotinha, espalhadas na sala da humilde casa, na Cidade Industrial de Curitiba, mostram as boas lembranças que mãe e filha tiveram em meio a consultas e internamentos no Hospital Pequeno Príncipe. Era lá que a menina recebia atendimento médico desde os dois anos de idade, quando seus rins demonstraram as primeiras debilidades. A família morava em Arapoti, mas freqüentemente Maria José embarcava em um ônibus com Gabriela, para Curitiba. "Nós vinhamos com um ônibus da Prefeitura do município, que saía de lá às 2h30 da madrugada e chagava em Curitiba às 6h. Essa rotina, na busca do melhor tratamento para ela, durou quatro anos", lembra Maria José.

Nesse meio-tempo, a mulher se separou do marido, que passou a morar na capital. Em junho do ano passado, Gabriela teve outra crise e novamente mãe e filha retornaram para Curitiba, e a menina ficou vários dias internada. Enquanto acompanhava o tratamento da criança, outra desgraça abalou a vida de Maria José. Ela foi estuprada e espancada por um desconhecido. "Fiquei muito abalada e entrei em depressão. Chorava toda hora e a Gabriela também chorava ao me ver daquele jeito. Por isso pedi para meu ex-marido cuidar dela enquanto tentava me restabelecer. Não queria que ela sofresse mais", contou.

Sem agüentar a ausência da menina, em dezembro a mulher voltou para a capital, onde alugou uma casa para morar com suas outras duas filhas. "Passamos o Natal e o Ano Novo juntas, e o pai dela sempre a trazia para passar alguns dias comigo. Minha filha sempre foi uma guerreira. Era era alegre, gostava de cantar, de falar muito e fazia uma força enorme para continuar viva. Quando vi seu corpinho no IML pedi perdão se em algum momento falhei com ela, mas estava com a consciência limpa", finalizou a mulher.

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