Adolescência em recuperação

As mesmas mãos que há pouco tempo seguraram bonecas também serviram para cometer pequenos furtos, comprar e vender drogas e apertar o gatilho de uma arma. Foi depois de percorrer trajetórias como essa, que hoje 30 meninas com idades entre 13 e 18 anos vivem privadas de sua liberdade, internadas em um presídio para menores infratoras, em Curitiba. Quem chega na unidade social Joana Miguel Richa, situada em um bairro nobre da capital, não imagina que atrás de muros baixos e em meio a um vasto campo arborizado funciona uma prisão, onde as adolescentes vivem uma rotina longe do clima tenso das unidades convencionais, mas com a mesma disciplina severa exigida nos reformatórios.

Por trás do rosto, ainda com traços de criança, e do jeito aparentemente ingênuo, as internas guardam histórias que envolvem sangue, drogas e mentiras. No topo do ranking dos crimes cometidos por elas estão o tráfico de drogas e o roubo. Esses delitos levaram 16 das 30 internas para a unidade social. O furto é o terceiro crime de maior incidência, cometido por cinco menores. A reincidência no descumprimento de medidas expressas pelo Juiz, como prestação de serviços, culminou na detenção de outras três. Por fim, das seis internas restantes, duas delas estão presas por homicídio, e as demais por latrocínio (roubo com morte), estelionato, lesão corporal e ato infracional, por motivo não discriminado.

Apesar do número de menores infratoras ser relativamente baixo, se comparado ao universo masculino, o índice de meninas que incidem no crime vem aumentando de forma vertiginosa. O que tem despertado a atenção nas estatísticas feitas pelos coordenadores da unidade social, que abriga jovens de todo o Estado, é a procedência das meninas, visto que a grande maioria vem de cidades do interior, e não da capital como era de se esperar. Das 30 internas, apenas duas cometeram crimes em Curitiba. O município que apresenta o maior numero de garotas infratoras é Cascavel, de onde foram encaminhadas sete menores. As outras 23 vieram de diversas cidades do interior do Estado, como Foz do Iguaçu, Umuarama, Ponta Grossa, Paranavaí, Guarapuava, Assaí e Malé.

Porém, a diretora da unidade social, Mariselni Vital Piva, ressalta que para serem internadas, um delicado processo judicial acompanha as jovens. Após cometer o crime, elas permanecem detidas por 45 dias na Delegacia do Adolescente da cidade, até que o juiz da Comarca local determina a sanção a ser paga. “De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, elas sofrem internação em dois casos: quando são reincidentes em pequenos delitos ou cometem algum crime grave, envolvendo ameaça e violência. Caso contrário o juiz determina pena alternativa, como a prestação de serviços”, explica a diretora.

Quando é feita a opção pela internação, o juiz não determina o tempo que a menor deve permanecer no reformatório. A cada seis meses um relatório é feito pela equipe técnica da unidade social, descrevendo o comportamento da jovem, e enviado ao juiz responsável. “A partir da análise do documento é decidido se a menor continua ou não internada, pois o prazo máximo de permanência na unidade social é de três anos”, finaliza Mariselni.

O dia a dia de uma nova vida

Ao conhecer o dia a dia das meninas internadas na unidade social Joana Miguel Richa, é possível concluir que a idéia de que presos saem pior do que entram nas cadeias pode ser reformulada. Com dedicação dos responsáveis pela regeneração das menores, um bom trabalho pode ser feito e com isso a certeza do resgate de uma vida digna torna-se cada vez mais possível.

Na unidade social o ócio não tem vez. Durante todo o dia uma seqüência de atividades torna a rotina menos árdua e ao mesmo tempo possibilita um resgate de auto estima. As 7h elas são acordadas pelos educadores e dão início ao cumprimento das obrigações, como arrumar a cela, fazer a higiene e lavar a roupa. Em seguida, são levadas da casa onde fica o alojamento para uma outra estrutura, onde acontecem as atividades, ambas sediadas no complexo da unidade social. Divididas em grupos, as meninas participam de oficinas como as de corte e costura, crochê, bordado e coral, e de aulas como artes, religião, educação física, e do ensino convencional. Após o almoço as menores retornam às atividades, onde permanecem até as 16h30. Às 18h o jantar é servido e em seguida elas ganham uma hora para recreação, e depois são conduzidas às celas.

Cada noite um grupo de seis meninas ganha o benefício de assistir televisão, na sala de TV, mas a regalia só é válida para aquelas que apresentam bom comportamento. A unidade social também promove passeios com as internas, como ida a museus. Além disso elas disponibilizam de atendimento médico, odontológico, psicológico, pedagógico e de assistência social dentro da própria unidade.

Dificuldades

Apesar da rotina das jovens estar bem longe da vivida por muitos presos de unidades convencionais, nem tudo é perfeito no dia a dia delas. De acordo com a diretora Mariselni Vital Piva, há exemplos de jovens que não se adaptaram ao sistema e chegaram a ser encaminhadas a hospitais psiquiátricos. “A abstinência da droga e a própria pressão do sistema que as priva da liberdade causa muitas vezes depressão, a ponto de exigir internamento, como foi o caso de uma menina que surtou dentro da unidade”, afirmou a diretora.

A convivência entre elas é outro problema enfrentado, já que as menores se dividem em dois grupos distintos, o de que quer “confusão” e o de que prefere manter-se isento de confrontos. “Existem meninas líderes, que tentam puxar as outras. Elas provocam mesmo. Chegam a pegar a comida da outra só para arrumar ” conta a diretora.

Apesar da movimentação diária, a solidão também assola a vida das meninas. Cada interna ocupa uma cela individual, onde há apenas uma cama e uma prateleira para guardar as roupas e os pertences. Os aposentos são trancados por uma porta de ferro, e dispostos lado a lado em um corredor formado por um emaranhado de portões de grades. Pôsteres de atores famosos, grudados nas paredes, e porta-retratos com fotos da família são alguns dos incrementos usados para afastar a frieza do local. Para tomar banho ou ir ao banheiro durante à noite, as meninas sempre são acompanhadas por educadores, os quais passam todo o período noturno em vigília no corredor. Além disso, todas as vezes que elas voltam para o alojamento, são submetidas a uma revista, para evitar que entrem nas celas com qualquer objeto que possibilite, por exemplo a confecção de uma arma.

Apesar de passarem apenas a noite trancadas, é nesse tempo que elas escrevem cartas para a família e preenchem um diário. “Aqui as meninas têm muito tempo para refletir, pois ficar internada significa uma parada para pensar na vida. O que mais nos alegra é que vemos a cada dia que muitas sentem vontade de mudar”, finaliza a diretora.

A realidade por trás do crime

Outros números apurados pelos coordenadores da Unidade Social Joana Miguel Richa, revelam que a baixa renda, o grau de escolaridade e a falta de estrutura familiar são os principais pontos em comum entre as internas. A renda mensal das famílias dessas meninas não ultrapassa dois salários mínimos, o que reflete o estado precário em que viviam e as necessidades que passavam antes de serem apreendidas. O nível educacional que prevalece entre elas também é baixo. Apenas três internas estão cursando o ensino médio, enquanto 27 fazem supletivo para concluir o ensino fundamental, nas dependências da própria unidade social. Só uma menor estuda em um colégio convencional. “Ela estava no ensino regular quando veio para a unidade e como aqui nós só disponibilizamos de supletivos, tivemos que abrir uma exceção para que ela não parasse de estudar. Todos os dias um educador a acompanha, fica nas dependências da escola e a traz novamente, afinal há regras que precisam ser seguidas”, afirmou a diretora da unidade, Mariselni Vital Piva.

Quanto a estrutura familiar, uma triste realidade, das 30 internas, somente cinco moravam com pai e mãe biológicos, e outras oito viviam com apenas um deles, antes de chegar no reformatório. O restante das menores moravam com parentes, sozinhas, na rua ou com outras pessoas. Esta carência familiar é percebida pelas raras visitas que as menores recebem na unidade social, permitida uma vez por semana. “Nós preparamos festividades em datas especiais como os dias das Mães e Natal, mas são poucos os parentes que vêm, pois a maioria deles mora no interior do Estado. E, o que mais notamos é a falta que elas sentem da família”, contou a Mariselni.

Contraditoriamente, algumas das meninas que sentem falta da presença, do carinho e do apoio das mães, também têm filhos e mantém-se ausentes da vida deles. Apesar da pouca idade, oito garotas já são mães, e apenas uma delas vive com o filho na unidade social. As outras crianças estão com os parentes das menores.

Preocupação com o futuro

Um bom exemplo de regeneração vem de uma garota de 18 anos que, internada pela segunda vez, acredita que a vida ganhou novo sentido. A jovem, que possui duas das três irmãs presas, contou que aos 9 anos saiu de casa para trabalhar como “mula” no tráfico de drogas, e ainda criança chegou a construir uma casa com o dinheiro ganho. Ao ser novamente internada, ela estreitou o relacionamento com a mãe e começou a se preocupar com o futuro. Hoje, por causa do bom comportamento, a adolescente tem a liberdade de freqüentar aulas profissionalizantes de manicure, pedicure e depilação, e garante que o próximo passo será estudar informática. O sonho dela é sair da unidade, voltar a morar com a mãe e correr em busca do primeiro emprego. “Sei que lá fora não vai ser fácil porque as ofertas para o caminho errado são muitas, mas depois do que vivi aqui, sinto que cresci e estou mais forte. É por isso rezo a Deus todos os dias”, revela.

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