A triste realidade dos presídios brasileiros

A dura realidade do sistema penitenciário brasileiro pode ser conferida no filme Carandiru, dirigido por Hector Babenco, que está em cartaz em vários cinemas da cidade. Baseado no livro “Estação Carandiru”, do médico Drauzio Varella, o longa-metragem foca o cotidiano de alguns personagens que habitaram aquele que foi, durante muitos anos, o maior presídio da América Latina.

A Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru, tinha nove pavilhões e cerca de 7.200 internos quando foi desativada, em novembro do ano passado. Por ali passaram alguns dos bandidos mais perigosos do País. A sequência final mostra a rebelião dos detentos e a invasão da PM em outubro de 1992, que terminou com 111 presidiários mortos.

Assistir ao filme ajuda a compreender a lógica interna de uma gigantesca penitenciária e, ainda, conhecer as “leis próprias” que regem o convívio entre criminosos encarcerados. Entre eles há alguns tipos bem definidos: os líderes, os mais temidos, os “laranjas”, os traficantes, os viciados. Há regras muito claras de convivência, que se desrespeitadas são punidas com surras violentas ou a morte.

Mesma coisa

Essa estrutura se repete na maioria dos grandes presídios brasileiros. Na Penitenciária Central do Estado, a PCE, em Piraquara, não é diferente. Guardadas as proporções (a PCE abriga hoje cerca de 1.400 internos), há muitas semelhanças entre as histórias mostradas no filme e outras que ocorrem aqui mesmo no Paraná. Para confrontar essas realidades, a Tribuna convidou um ex-detento da PCE e um agente penitenciário que trabalhou por muitos anos no mesmo presídio para assistir Carandiru e fazer comentários.

O ex-detento, que vamos chamar de Sandro (ele pediu para não ser identificado), cumpriu pena por homicídio em um dos períodos mais explosivos da PCE. Ele estava lá quando ocorreram as duas últimas rebeliões (em 2000 e 2001) e conviveu com líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC) que haviam sido transferidos para o Paraná. Testemunhou mortes, tráfico de drogas e o surgimento do Primeiro Comando do Paraná (PCP).

Já o agente penitenciário, que também não quer ser identificado, trabalhou na PCE há mais tempo. Ele relembrou a época em que o crack não havia chegado ao Paraná e ainda “havia mais respeito” às leis próprias do presídio. Na opinião do agente, o crack acabou com um certo grau de dignidade que havia na convivência entre os criminosos apenados, e trouxe muito mais violência para dentro da penitenciária e para a sociedade em geral. (BM)

Drogas fizeram aumentar a violência

No filme, o personagem “Nego Preto” aparece como o líder máximo dos detentos. Além de ser o chefe do serviço da cozinha do Carandiru, ele era uma espécie de juiz interno, chamado e consultado para resolver conflitos e autorizar transferências para outros pavilhões, execuções e acertos de contas em geral. “Nego Preto” era um assaltante que foi preso em São Paulo depois de matar um comparsa que ia traí-lo. Adquiriu respeito dos internos se impondo com voz firme, atitude honesta e capacidade para solucionar brigas.

Na vida real, segundo o agente penitenciário aqui apelidado de Jorge, essas figuras existem no sistema. Só que muita coisa mudou na última década. Jorge diz que o último grande líder da PCE, que impunha respeito de verdade, foi o detento conhecido como “Martelo”. Ele “tinha” uma banca onde vendia alimentos, instalada no pátio da penitenciária.

Havia quatro grandes líderes na cadeia, que se reuniam com “Martelo” para decidir o que fazer em casos de dívidas entre detentos, delações e outras broncas, conta Jorge. Assim como no filme, onde “Nego Preto” não é um homem fisicamente mais forte do que os outros, Jorge explica que os líderes de presídios se impunham não pela força física, mas sim “na moral”.

No entanto, Jorge lamenta que hoje não seja mais assim. “Agora manda o mais violento, aquele que se impõe pelo terror e pelo grau de violência que aplica nos desafetos”, observa o agente, lembrando da rebelião de 2001 na PCE, quando três detentos foram decapitados a mando dos líderes do PCC. “Antes o líder era o cara conciliador, o agregador. Hoje é o louco violento”, conclui.

Sandro conta que no período em que esteve na PCE havia alguns desses manda-chuvas. Eram criminosos de alta periculosidade, respeitados pela violência de seus delitos. “Você podia escolher entre obedecer e ser um do grupo deles, ou ficar na sua. Mas se desrespeitasse um dos caras dava punição, na maior parte das vezes com morte”, explica.

Drogas

O filme Carandiru se passa no começo dos anos 90, época em que o crack começa a invadir a cadeia. No filme, um dos detentos, alucinado pela droga, acaba matando um companheiro e antigo amigo, durante uma crise paranóica. A história é real.

Antes do crack, as drogas mais comuns na Casa de Detenção de São Paulo eram a maconha e a cocaína injetável

Jorge e Sandro não gostam de falar sobre drogas no presídio. Apenas admitem que a maconha e o crack chegam para os presos e há aqueles que traficam e dominam o comércio dentro da penitenciária. Estes adquirem poder sobre os viciados, que muitas vezes pagam dívidas de droga com a própria vida ou são obrigados a coagir a família para pagar, sob pena de duras represálias contra eles ou os próprios parentes.

Eles afirmam que o crack é responsável pelo aumento da violência nos crimes em geral e nas punições aplicadas aos presos que desobedecem às regras do presídio.

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