Uma velha cerimônia colonial

De vez em quando acontece um episódio, rapidamente esquecido, que ilustra o fato de o Brasil não deslanchar, como desejam os que trabalham. E serve para evidenciar por que há em nosso país dois mundos distintos, um em que vive a elite e outro em que vive o povo. E, por que o primeiro é acusado de responsável pelas mazelas que atormentam o segundo. Ocorre que os habitantes do primeiro têm privilégios, agem como donos do país e das instituições, solapam a idéia de democracia social e fazem, na prática, esta ser nada além de uma miragem.

No começo da semana ocorreu em Brasília um desses episódios. O presidente do Senado, José Sarney, salvou o mandato de Antônio Carlos Magalhães, ameaçado por um processo de cassação, recomendado pelo Conselho de Ética do próprio Senado e que foi arquivado. Motivo do processo: acusação documentada de que ACM mandou grampear as conversas telefônicas de mais de mil pessoas, em cinco estados. A atitude de ACM, confessada por ele a jornalistas, expõe arrogância e invulgar senso de impunidade.

Traduzindo: ele faz coisas que a maioria dos brasileiros, se fizer, é punida. Esta é a diferença. Ele pertence à elite, que carrega hábitos e privilégios do tempo de colônia, quando havia senhores e escravos. Os primeiros mandavam e tinham poderes; os segundos obedeciam e tinham deveres. Que se desmoralize o Senado, mas não o senhor dos engenhos. O Conselho de Ética que vire pipoca. Ética é para o povo.

ACM sofreu processo semelhante no ano passado. Assim, é reincidente. Quando presidente do Senado, bisbilhotou votos secretos de seus colegas. Ele cometeu um crime. E, para não perder o mandato, renunciou. Não que o presidente anterior do Senado, Jader Barbalho, fosse um tribuno romano. Ele somente era inimigo de ACM. E da mesma categoria, pois também teve de renunciar, logo depois.

O que Sarney, no íntimo, pensa das instituições pode ser mensurado no desprezo ao Conselho de Ética, um desdém ao próprio Senado. Há nele o profundo sentimento de categoria mandatária, cujos interesses superam os do país. Foi assim, presidente da República, que transformou uma ilha quase deserta, Fernando de Noronha, em território para um amigo governar, com sandálias e bronzeador.

Se Sarney quer salvar um amigo, isto é bonito. Mas que o faça em respeito às instituições. Da forma como faz, é indecente. E, se ACM fosse honrado, não deveria temer processos. E, se não é, deveria pagar. Porque, para os outros, esta é a lei.

O episódio revela como em nosso país o interesse pessoal sobrepuja o público, justamente onde não deveria ocorrer, entre os homens públicos. E a lambança se perpetua, porque o exemplo vem de cima e se esparrama. No segundo mundo, do povo, cristaliza a idéia de que há um terreno movediço, quase indefinível, entre o público e o privado, comum somente aos mortais poderosos, chamados políticos com mandatos. É este código nebuloso que contribui para o país dar voltas em torno de si mesmo e não sair disso.

O fato de homens como Sarney e ACM sobreviverem a governantes tão distintos quanto generais ditadores, presidentes jovem guarda, mineiros atrapalhados, estadistas sociólogos e metalúrgicos deslumbrados, mostra o quanto poderosa é a casta de origem colonial. E que sua cartilha é mais duradoura que as promessas de mudanças. Estas, sim, efêmeras.

Edilson Pereira

(edilsonpereira@pron.com.br) é editor em O Estado.

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