Uma raça de gigantes

Quaisquer das nossas cidades que se localizam entre Rio Negro (divisa com Santa Catarina) e Sengés (divisa com São Paulo), poderiam ter sido batizadas com o nome de Cristóvão de Abreu, sem o menor desdouro às designações escolhidas para elas que tanto significado histórico, sentimental e ambiental conseguiram guardar na memória dos paranaenses.

Ao fazer esta menção penso que a mesma estaria plenamente justificada, pois em 2003 completa-se o impressionante número de 270 anos transcorridos desde que aquele intimorato luso-brasileiro adentrou a vila de Sorocaba, chefiando dezenas de homens que conduziram desde o continente de São Pedro, o atual Rio Grande do Sul, a primeira tropa de gado vacum e muar para revender aos empreendedores da mineração.

Contam os historiadores que Cristóvão Pereira de Abreu, seu nome completo, desde antes de 1727 já percorria o Rio Grande em missões delegadas pela Coroa, tendo conhecido na época a Colônia do Sacramento, onde contemplou pela primeira vez as incontáveis manadas que recobriam os campos adjacentes, fruto direto e benfazejo do descortino dos missionários jesuítas que implantaram entre os guaranis as famosas reduções.

Foi o padre Roque Gonzalez, em 1626, o introdutor do gado vacum na América espanhola, daí resultando o vastíssimo manancial semovente que sustentou um dos ciclos econômicos mais importantes da nossa história, o tropeirismo, só interrompido quando as ferrovias começaram a ser implantadas no País, depois de 1850. Na verdade, Cristóvão, o primeiro tropeiro brasileiro digno de assim ser chamado, teve também a idéia genial de perceber que os animais, que sobravam nos campos do Rio Grande, seriam de extraordinária valia comercial nas lavras de Minas Gerais, que tinham extrema carência de tração para os pesados labores ali realizados.

Assim, em 1733, não se sabe exatamente o dia, nem o mês (provavelmente depois do inverno), a tropa conduzida por Cristóvão de Abreu entrou em Sorocaba. A viagem teve início em Sacramento, à beira do estuário do Prata, sendo a tropa tangida até Laguna, pela chamada vacaria do mar, para daí galgar os campos de cima do planalto catarinense. Este caminho havia sido anteriormente traçado pelo sargento-mór Francisco de Souza Faria.

O historiador gaúcho Moysés Vellinho informa que Cristóvão, ao contrário do que se pensava, era mesmo nascido em Portugal “parecendo certo que lhe corria nas veias o nobre sangue de Nuno Álvares Pereira, o santo condestável”. Tinha apenas 21 anos quando, pela primeira vez, despontou em Sacramento como contratador de couros, no início dos anos 1700, embora não tivesse êxito neste negócio rude e agreste. Em 1710, aparece no Rio de Janeiro entre os signatários do termo de resgate exigido pelos corsários franceses que assaltaram a cidade. Em 1722 está outra vez em Sacramento, segundo Vellinho, “de volta às suas ásperas aventuras de negociante de couros e campeador”.

Cristóvão de Abreu é, por força do destino, figura invulgar na própria formação do Rio Grande, até então um ermo ignorado pelos navegadores que cruzavam de largo pela costa, enxergando apenas “uma faixa desolada e inóspita, sem sombra de acidentes protetores”. Só no século XVIII, “as notícias sobre as riquezas que os baldios do litoral encobriam, entraram a alvorotar a cobiça dos pioneiros, tanto mais que a exploração das lavras de ouro, em plena efervescência nas Minas Gerais, estava a reclamar a remessa contínua de gado e cavalgaduras”, diz-nos ainda Vellinho em sua prosa peculiar.

Acompanhemos a narração do ilustre cronista da saga rio-grandense, brasileira acima de tudo, na qual brilham nomes como Aleixo Garcia e Raposo Tavares “cujas jornadas fabulosas chegavam a assustar o sábio Saint-Hilaire”, quando o naturalista refletiu sobre este irmão mais recente daquela “raça de gigantes”, ele que ao partir de Sorocaba em sentido inverso ao percorrido pelas tropas, palmilhou os mesmíssimos caminhos desbravados, desde os idos de 1730, por Cristóvão Pereira de Abreu e milhares de tropeiros. Eis sua descrição do fundador do ciclo das tropas:

“Na sua condição de tropeiro e campeador, ele partia da Colônia do Sacramento, cortava os campos cisplatinos infestados de castelhanos e índios missioneiros, vencia a desolação do litoral rio-grandense, galgava o planalto na altura do Morro dos Conventos, em Santa Catarina, e lá ia tangendo seus animais rumo aos mercados do Centro, tendo como foco de irradiação as feiras de Sorocaba”.

Fiz referência prévia ao caminho aberto por Francisco de Souza Faria, empresa que lhe foi confiada por Lisboa em 1727, a fim de que se respeitasse o domínio de um território sob constante ameaça dos espanhóis, principalmente os jesuítas das Missões. Como o caminho fosse extremamente ruim, a Coroa recorreu a ninguém menos que Cristóvão de Abreu, cujo experimentado conhecimento da topografia tornava-o apto a melhorar a rota rasgada por Faria. Conta Vellinho que Cristóvão construiu 300 pontes e um sem-número de estivas sobre rios e pântanos, para corrigir os erros do traçado inicial. Ao final da jornada exclamou: “Em menos de um mês gente escoteira a pé podia passar todo o em que gastei treze”.

A antiga estrada das tropas, cravada sobre a vastidão dos campos planaltinos, teve sua importância socioeconômica definitivamente reconhecida pelo historiador paulista Alfredo Elis Júnior. “Talvez a estrada do Rio Grande a São Paulo tenha sido a rota de maior importância da História do Brasil, pois sem ela não teria havido o ciclo do ouro, não teria havido o do café e nem a unidade nacional teria sido levada a cabo”.

Findo o trabalho exaustivo, também a capacidade financeira de Cristóvão se esgotara e as dívidas acumuladas na empreitada foram-lhe um fardo insuportável. Talvez por isso pensou trazer gado vacum e muar da Colônia para vender aos empreiteiros das lavras, que deste insumo careciam como o ar que respiravam. O governador paulista deu ordens para que o gado de Cristóvão tivesse preferência na passagem pelo novo caminho e, talvez, determinou a primeira moratória que se tem notícia nestas bandas, ordenando os credores a não molestar o tropeiro até sua chegada. Na feira de Sorocaba, que então surgia, Cristóvão vendeu a tropa que comentaristas atuais avaliam em três mil cabeças, tirando literalmente o pé do lodo. O negócio foi tão bom que o tropeiro recolheu à fazenda real dez mil cruzados em tributos. Estava iniciado o ciclo das tropas.

Ao longo dos anos a região foi palco de incessante vai-e-vem de tropas e tropeiros. Logo, o próprio Cristóvão traçou um caminho saindo de Viamão, o maior centro vendedor de bois, cavalos e mulas, por cima da serra, na direção de Vacaria. Daí se chegava a Lages e pela lendária Estrada da Mata (hoje BR-116) a Rio Negro, completando-se a esgotante travessia pelos imensos vazios da Lapa, Curitiba e Campos Gerais, cruzando rios e florestas até entrar em São Paulo. Onde a tropa parava para descansar e atravessar os meses de inverno causticante surgiram os locais de pouso, mais tarde povoados, vilas e cidades como as já citadas, além de Ponta Grossa, Castro, Jaguariava e Piraí do Sul, entre tantas outras, só considerando o território paranaense.

Este extraordinário processo civilizatório, que consumiu mais de um século, se fez sobre o lombo de burros, com sangue, suor, lágrimas e visão patriótica em cima das trilhas amassadas pelos cascos de milhares de animais. No rastro glorioso dos pioneiros brotaram riqueza, cultura, costumes, tradições e organizações humanas. Lá nos primórdios se encontra a figura envolta pela névoa da história de Cristóvão Pereira de Abreu, cuja maior honraria foi ter o nome dado a uma das muitas pontas de areia da Lagoa dos Patos, onde havia edificado um curral.

É quase nada para quem foi tão grande.

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor.

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