Tráfico de pessoas

A ONU há muito vem se preocupando com o tráfico de seres humanos, moderna forma de escravidão do século XXI, que vitima anualmente no mundo cerca de quatro milhões de pessoas.

O Protocolo para prevenir, suprimir e punir o tráfico de pessoas, mais conhecido como Convenção de Palermo, em suplemento à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional define o tráfico de seres humanos como: ?o recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas por meio de ameaça ou uso da força ou poder ou de uma posição de vulnerabilidade ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sobre outra pessoa, para o propósito de exploração?.

Exige o protocolo por parte dos países de origem, de trânsito e de destino uma abordagem global e internacional que inclua medidas destinadas a prevenir esse tráfico, designadamente protegendo os seus direitos fundamentais internacionalmente reconhecidos.

O tráfico de seres humanos é uma nova fronteira do crime organizado e é a negação mais evidente da dignidade humana e dos direitos humanos que existem na atualidade. Quanto mais se toma conhecimento de como pessoas inocentes e vulneráveis são massacradas por esse tipo de crime, mais impossível se torna fazer vista grossa. É um crime que tem de ser tratado de forma diferenciada, porque é sutil e, muitas vezes, disfarçados por outras praticas legais.

Para combatê-lo, é preciso trabalhar com sofisticação e em rede, reconhecendo que as mulheres levadas pelo tráfico não são co-autoras nem cúmplices de um crime, mas vítimas indefesas, enganadas e não parceiras do crime e necessitam de reeducação e readaptação social. A maioria das vítimas sabe que irá se prostituir, mas não sabe que será mantida no regime de semi-escravidão, culpam-se da vida que têm, como se a escolha fosse sua num mundo de possíveis opções diferentes e escamoteando o agravamento da situação social. Não há percepção do crime na população e os órgãos de defesa se encontram despreparados para diagnosticar e sistematizar os inquéritos.

O tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual é um crime silencioso e invisível aos olhos da sociedade em geral, na medida em que todos os procedimentos que envolvem tal modalidade criminosa são aceitos socialmente e que só manifesta repulsa quando toma conhecimento de seus resultados. Na exploração sexual infantil, um dos mais assustadores aspectos que envolvem este crime, é a anuência da sociedade ao afirmar que: ?pelo menos ela não está roubando ou matando? ou o que disse um pai de uma menina explorada: ?essa menina tem uma mina de ouro no meio das pernas?.

O tráfico humano não implica apenas no transporte ilegal de pessoas de um país para outro, mas também na relação de dependência em que os contrabandeados são mantidos em seguida. O contrabando de estrangeiros é um crime contra o Estado e caracteriza-se pela intermediação da entrada ilegal de uma pessoa em um Estado de que não tem nacionalidade nem ?status? de residência permanente, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, benefícios financeiros ou materiais de outro tipo. O estrangeiro ao consentir em ser contrabandeado é tratado como criminoso e a pessoa traficada é considerada vítima do tráfico uma vez que é geralmente submetida a ameaça ou uso de força ou outras formas de coerção, de rapto, ou fraude e logro, de abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade.

Há necessidade de que se tome ciência desse fenômeno terrível, no qual as vítimas são tratadas como objeto e escravizadas, atingindo, na maioria das vezes, às mulheres e as crianças que são vendidas e compradas, quase que exclusivamente para fins sexuais das quais 48% são menores de 18 anos. Mas também o tráfico de pessoas é utilizado para adoção ilegal, trabalho escravo e retirada de órgãos para comercialização. É o terceiro negócio mais lucrativo do mundo, gerando cerca de 12 bilhões de dólares por ano e ficando atrás somente do tráfico de entorpecentes e de armas. Chega a meio milhão o número de mulheres e crianças que são contrabandeadas, por ano, da África para países europeus como a Alemanha, Bélgica e Itália onde as mesmas são obrigadas à prostituição e forçadas a trabalhos domésticos.

Os menores quando não são conduzidos a prostituição são utilizados na produção de materiais pornográficos e obrigados a mendigar e roubar. Nos Estados Unidos existem, nos dias de hoje, mais de 35 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza e só na Flórida, a cada ano, os grupos de traficantes de seres humanos importam, da América Latina, cerca de 25 mil mulheres destinadas ao mercado da prostituição. O Brasil é um dos maiores fornecedores de vítimas para o tráfico doméstico e internacional de seres humanos, independente de sexo ou idade.

As mulheres são atraídas, em seus locais de origem, pelo oferecimento de empregos dignos diante das difíceis condições de vida que imperam nesses países, sendo empurradas a este perigoso estilo de vida pela falta de oportunidade para sobreviverem dignamente. Logo elas percebem que os trabalhos oferecidos não existem e imediatamente os traficantes as enviam à indústria do sexo, retirando-lhes os passaportes para limitar o movimento e para que não possam escapar.

São vendidas a donos de prostíbulos que as exploram até o limite, para pagar o custo do seu ingresso e estadia ilegal na nação, trazendo depois de um ano, benefícios a seus patrões da quantia equivalente a 120 mil dólares, ou 10 mil dólares por mês ou ainda 330 dólares por dia, negócio este dos mais lucrativos e na Europa, algumas chegam a dar um lucro mensal de 15 mil euros a seus exploradores. Só em 1997, 175 mil mulheres foram traficadas dos países do leste europeu.

O tráfico de pessoas esta ligado aos sindicatos internacionais do crime organizado que vendem drogas, armas e documentos falsos, sendo uma ameaça à saúde pública global que ajuda a expandir o HIV/AIDS e outras doenças, e à segurança global porque os seus lucros financiam a criminalidade e a violência.

O Brasil é acusado diante da comunidade mundial como um país que não pune adequadamente o tráfico humano sendo leniente com os criminosos, não atendendo os padrões mínimos para a eliminação desse crime, pois os traficantes raramente são presos ou punidos. O último relatório do Departamento de Estado americano sobre o assunto, afirma que o Brasil está promovendo esforços significativos para atingir os padrões de controle do tráfico de pessoas inclusive com medidas contra o trabalho infantil e turismo sexual mas não há punições para os criminosos envolvidos nessas atividades, não atendendo completamente aos padrões mínimos para a eliminação desse crime. Este relatório afirma que mais de 75 mil mulheres e adolescentes brasileiras, vítimas do tráfico de pessoas atuam em redes de prostituição na Europa e outras 5 mil em países da América Latina. Diz ainda que cerca de 25 mil brasileiros são vítimas, anualmente, de trabalhos forçados no campo e que o Brasil é destino de escravos importados da China e da Bolívia.

No ano de 2003, no Brasil cerca de 100 exploradores de trabalhadores escravos foram processados e em muitos desses processos não se chegou a conclusão alguma e alguns dos poucos acusados que foram condenados, continuaram em liberdade, sendo a impunidade o problema mais grave. Em 2004, três foram condenados no Brasil na questão do trabalho escravo, apesar de ter sido investigada mais de 250 denúncias e da libertação de 2.743 pessoas.

O Brasil, depois do alerta de que falhava no combate ao tráfico de pessoas procurou se esforçar atualizando a sua legislação penal e em 12/03/04 promulgou, através do Decreto n.º 5.017, o Protocolo adicional à convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional relativo à prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças onde se compromete a executar uma abordagem global e internacional, que inclua medidas destinadas a prevenir esse tráfico, punir os traficantes e defender as vítimas desse crime protegendo os seus direitos fundamentais, internacionalmente reconhecidos. Mas, isto ainda era insuficiente, pois o artigo 231 do Código Penal só punia quem promovia ou facilitava a entrada, no território nacional, de mulher que nele viesse a exercer a prostituição ou a saída de mulher que fosse exercê-la no estrangeiro. Neste delito o objeto jurídico era a moralidade pública e a liberdade sexual onde o sujeito passivo só podia ser a mulher, independente da sua honestidade. O tipo objetivo era a promoção ou a facilitação visando a entrada em território nacional de mulher para o exercício da prostituição ou a saída com esta mesma finalidade para o exercício no estrangeiro. E finalmente o tipo subjetivo era o dolo com a vontade livre e consciente de promover ou facilitar, ciente do propósito da mulher de dedicar-se a prostituição.

Em 28 de março do corrente ano, pela Lei n.º 11.106, nova modificação foi procedida em nossa legislação penal alterando-se o Título VI que tratava dos crimes contra os costumes para o de lenocínio e do tráfico de pessoas, passando, o capítulo V a ter a mesma denominação que antes era do lenocínio e do tráfico de mulheres. Modificou-se o artigo 231 do mesmo diploma legal que passou a ter a seguinte redação: ?promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha a exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro?, mantendo-se a mesma pena. Acrescentou-se um novo artigo, com o mesmo número, mas com a letra ?A? para tratar do tráfico interno de pessoas, que não existia na legislação anterior e que ficou com a seguinte redação: ?promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha a exercer a prostituição? estabelecendo pena idêntica ao crime de tráfico internacional de pessoas.

Um grande número de acordos internacionais e leis nacionais já condenavam e declaravam o tráfico de pessoas ilegal, mas para surtir efeito, deve ser aplicado de forma justa e constante. Novas regras criam raízes somente quando contam com a força da exigência de seu cumprimento. Essa força não pode ser apenas de um estado pois o tráfico de pessoas é um problema transnacional que exige cooperação transnacional, o que ainda é insuficiente. Todos os países devem trabalhar com mais intensidade e em conjunto para fecharem as rotas do tráfico, processar e condenar traficantes, proteger e reintegrar as suas vítimas. Todas as nações devem redobrar a determinação de evitar que as pessoas se deixem seduzir pelo tráfico.

As causas fundamentais são profundas, pois, ainda existe a falta de respeito básico e oportunidades econômicas para as mulheres junto a conflitos civis e corrupção que levam as pessoas ao desespero onde o racismo e a xenofobia exercem igualmente o seu papel de exclusão. Esses males não podem ser erradicados em uma só geração e talvez nunca possamos erradicá-los completamente, mas com muito trabalho e boa vontade podemos reduzi-los e contê-los. Só saberemos até onde podemos chegar, tentando e lutando, pois para o mal triunfar basta que pessoas de boa vontade não façam nada e isto não faremos. Devemos lutar não só pelas vítimas reais e potenciais do tráfico, mas, lutar também por nós, pois, não podemos dizer que temos dignidade se não defendermos a dignidade dos outros.

E nesta jornada, na luta pelos direitos humanos e no resgate da dignidade desses seres inocentes e vulneráveis não devemos desistir até que se consiga erradicar totalmente o tráfico de pessoas, combatendo desta forma o crime organizado.

Dalio Zippin Filho é advogado criminal e professor na Universidade Tuiuti do Paraná.

Voltar ao topo