Teoria diferenciada de Schmidhäuser e o sistema penal brasileiro

O sentido que um setor da moderna doutrina dos países centrais (por exemplo, a teoria diferenciadora de Schmidhäuser) empresta à pena (no Estado constitucional e democrático de Direito) em quase nada se coaduna com nossa realidade.

Schmidhäuser confere um particular sentido à pena, segundo as pessoas ou instituições que nela intervêm: o legislador, os órgãos encarregados da persecução do delito, o juiz penal, os funcionários que têm a função de executá-la, o próprio apenado e a sociedade.

Ao legislador lhe preocuparia a ?justiça? da pena, mas, mais ainda que a idéia ou valor ?justiça?, lhe preocuparia o ?bem? da sociedade, e procuraria protegê-la, mediante a pena.

Para os órgãos encarregados da perseguição do delito, a pena tem outro sentido: o de esclarecer os fatos e colocar seus autores à disposição dos tribunais, guiados pelo princípio de ?igualdade?, sem prejuízo de contribuir à manutenção da ?paz jurídica?.

Para o juiz penal trata-se de ?fazer justiça? por meio de uma correta ?valoração? dos fatos, jogando um papel importante as exigências da prevenção ?especial?, e não (só) as de prevenção ?geral?.

Os funcionários encarregados da execução, por seu turno, vêem na pena hoje o modo de conduzir o apenado pelo caminho mais adequado afim de que possa lhe ser proveitosa sua presença na prisão assim como facilitar sua posterior incorporação à sociedade como membro útil.

Para o próprio apenado a pena deve ter, também, algum sentido: se ele a aceita voluntariamente e a assume, pode se livrar da sua culpa e reconciliar-se com a sociedade ofendida pelo seu delito.

Por último, para a sociedade a pena tem um outro sentido: o de reconciliar-se com o apenado, admitindo-o novamente em seu meio uma vez cumprido o castigo.

A exposição sobre o sentido da pena feita por Schmidhäuser é um ótimo exemplo, talvez, de como as coisas deveriam ser (em qualquer país civilizado, ou melhor, em todos os países democráticos de Direito). Em países periféricos como o nosso, onde os índices de criminalidade são exageradamente altos, (absurda e lamentavelmente) dão para a pena (todas as pessoas nela envolvidas) outros sentidos completamente diversos (Direito penal simbólico, penas desproporcionais, total e absoluta falta de oferta de condições para a ressocialização etc.).

Nosso legislador, em geral, não faz uso da pena (de Direito penal) para fazer justiça, visando ao bem da sociedade. Legisla muitas vezes simbolicamente, comina penas desproporcionadas e ainda acredita, apesar das advertências de Beccaria de 1764, que a cominação abstrata da pena (e sua severidade) são suficientes para controlar o delito.

Os órgãos da persecução penal atuam, consciente ou inconscientemente, de modo seletivo e discriminatório. O princípio da igualdade definitivamente não é observado. A pena é imposta segundo essa seletividade e isso não contribui (ou contribui muito pouco) para a tão almejada paz jurídica. A pena de prisão, por exemplo, na realidade prática prisional, tem como pressuposto a pobreza, a falta de escolaridade etc.. Os poucos (pouquíssimos) presos que fogem dessa regra geral constitem exceção (e só confirmam a regra). O delito é ubiqüo (todas as classes sociais delinqüem). Mas só vão para a cadeia (como regra geral) os desfavorecidos.

O juiz, por meio da pena, deveria procurar o justo, o equilibrado etc. Entretanto, com tanta demanda de punição (da sociedade, dos meios de comunicação etc.), ele acaba (muitas vezes) sujeitando-se a tais reclamos e perde por completo o sentido da correspondência (que deve existir) entre a culpabilidade e a pena. Sua acentuada ideologia repressiva vem impedindo, por exemplo, a aplicação (mais expressiva) das penas alternativas.

Os funcionários dos presídios de modo algum (ou muito raramente) vêem na pena (de prisão) uma oportunidade para a ressocialização do condenado. Sua visão, em geral, é retributiva. Muitos, por conseguinte, (de modo totalmente equivocado) chegam a entender que o preso ali está não para cumprir um castigo, senão para ser diuturnamente castigado, maltratado, humilhado etc. Justamente por isso é que nossas prisões não são centros de ressocialização, senão centros de formação de criminosos atrozes. Aliás, todas as vezes que queremos aumentar o nível de violência e de criminalidade, basta encher as cadeias e proporcionar ao criminoso tudo o que ele precisa para se aprimorar em sua ?carreira?.

Nem o apenado nem a coletividade, por último, vêem a pena como reconciliação. Mesmo estando ele dentro do presídio, a comunidade vê o condenado como perturbador do meio social. Logo, não se abandona a visão retributiva, nem sequer quando o preso torna-se um egresso. Aliás, o contrário, normalmente ele não é aceito e volta a delinqüir seja porque é rejeitado, seja porque conquistou dentro do presídio técnicas de aprimoramento no crime (sem contar o incremento do seu ódio contra a sociedade, sua baixa auto-estima, seu sentimento de rejeição – pela família, pela sociedade etc. ).

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais – www.lfg.com.br)

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