Surdos às urnas

Muitos brasileiros surpreenderam-se com a vitória de Lula sobre Geraldo Alckmin. A surpresa foi tanto maior porque, além de não ter correspondência nas eleições legislativas e para os governos estaduais, onde o partido do presidente colheu parcos resultados, foi uma vitória em meio a uma séria crise ética que chegou às portas do gabinete presidencial. Diz-se que ?a voz do povo é a voz de Deus?, mas há quem duvide seja verdade, pois àquele nem sempre é possível aquilatar corretamente a verdade e obter instrumentos capazes de orientá-lo na melhor escolha. Mas, no regime democrático republicano presidencialista, que é o nosso, a voz da maioria do povo deveria ter a força da voz de Deus, ou seja, precisa ser obedecida, sob pena de haver incurável distorção do sistema e o poder ser tomado por quem não logrou os mandatos outorgados nas urnas. É o que está por acontecer.

Em busca da governabilidade, Lula está tendo de negociar com os que o apoiaram e também com os que o combateram. Necessita montar uma base parlamentar majoritária e sólida e contar com forças político-partidárias suficientes para sustentar-se no poder com poder e não apenas como ocupante de um cargo honorífico.

No mais, ainda sobre ele pesa a ameaça, distante, muito distante, de um ?impeachment? sugerido pela OAB e sonhado por alguns de seus adversários mais ferozes.

Não são condenáveis, e sim merecedores de aplausos, os esforços por essa união em torno do novo governo para viabilizá-lo. Também verdade que, para que negociações dessa ordem cheguem a um bom termo, é preciso fazer concessões. E concessões de parte a parte. Mas, o que está acontecendo não anuncia apenas concessões, mas cessões de poderes que não são oriundos das urnas. A voz das urnas está encontrando ouvidos moucos. Há quem esteja negociando com o presidente eleito na base do esfarelamento do bolo do poder, sem nenhuma linha programática e/ou ideológica comum. É a fome pelo poder que está comandando o acordo que se busca para obtenção da governabilidade.

Lula já admitiu e até proclamou que o seu partido vai ter de recuar, dando espaços para outras forças que o tenham apoiado. Os trâmites das negociações caminham não só para o alijamento do PT, mas para a absorção, via distribuição de cargos do primeiro escalão e andares inferiores, também a partidos ou parcelas deles que não apoiaram o presidente em sua reeleição. Ele espera, por exemplo, que haja união das duas facções do PMDB, para decidir com a agremiação que foi de Ulisses Guimarães que cargos vai ocupar no governo. No executivo e também no legislativo. Cogita-se não só de dar ao PMDB a maioria dos ministérios, comandos de estatais e outros cargos importantes do executivo, como também e com respaldo do regimento interno da Câmara, as presidências e lideranças nas duas casas do parlamento.

Lula não esconde que prefere a eleição, mais uma vez, do atual presidente da Câmara, o comunista Aldo Rebelo. E o peemedebista Renan Calheiros proclama sua intenção de permanecer na presidência do Senado. Se tal ocorrer, estando o vice-presidente reeleito José Alencar gravemente enfermo, é de se esperar que, nas ausências de Lula – e ele costuma se ausentar com freqüência -, Rebelo, como presidente da Câmara, venha a ocupar interinamente a Presidência da República. Se vencer a tese peemedebista, presidente interino será um de seus membros. E peemedebista será, pela força que estará conquistando, o próprio governo Lula. Não foi esta a voz do povo.

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