STF admite progressão de egime nos crimes hediondos – I

Em 1990, para combater a chamada criminalidade (clássica), que mais preocupa a população (estupro, latrocínio etc.), o legislador brasileiro, com fundamento na Constituição Federal (art. 5.º, inc. XLIII), aprovou a Lei 8.072/1990, que introduziu no nosso ordenamento jurídico infraconstitucional a figura dos crimes hediondos e equiparados. Cuida-se de texto legal que constitui um marco na legislação simbólica e punitivista (que vem sendo adotada, nas duas últimas décadas, com grande amplitude, em toda América Latina).

Daí para cá, apesar de todo rigor da lei, a criminalidade clássica ou convencional só aumentou. Pouco ou nada foi feito para combater as suas causas (educação para todos, socialização do menor e do adolescente, moradia, emprego, integração familiar, menos desorganização social etc.). Sem que o governo e a sociedade civil cumpram (integralmente) suas responsabilidades básicas, é pura ilusão supor qualquer alteração séria no quadro de violência endêmica que estamos vivendo. Com leis penais novas muito menos chance haverá de resolver o problema.

Em lugar de se fazer o que deve ser feito, adotam-se medidas ilusórias e simbólicas, em todo momento, contando-se com o apoio de grande parte da mídia. A promessa de que leis penais duras acabam ou diminuem as taxas da criminalidade constitui a base dessa política simbólica e punitivista.

Ocorre que o legislador brasileiro também comete equívocos. Ele acabou capitulando como crime hediondo uma série de fatos que não possuem essa natureza. Por exemplo: toque nas nádegas, beijo lascivo, falsificação de cosméticos etc. Nesses casos, o rigor da lei e sua desproporcionalidade são patentes. A proibição da progressão de regime configura um desses instrumentos carentes de razoabilidade. O diploma legal, com seus critérios abstratos, nem sempre se apresenta como instrumento justo nos casos concretos.

É bem provável que ninguém como Alberto Silva Franco (Crimes hediondos, 4.ª ed., São Paulo: RT, p. 161 e ss.) tenha lutado tanto pelo reconhecimento da inconstitucionalidade do § 1.º do artigo 2.º da Lei 8.072/1990, que impõe o cumprimento da pena (por crime hediondo) integralmente em regime fechado. Sabemos que esse ?integralmente? não nasceu verdadeiro, porque também os crimes hediondos admitem livramento condicional, ressalvando-se o reincidente específico em crime hediondo (pois nesse caso, como se sabe, não cabe livramento condicional).

Nossa Corte Suprema, até o ano de 2004, consolidou clássica jurisprudência no sentido de que era constitucional o citado dispositivo legal. Difusamente, entretanto, alguns poucos juízes do país, com base no princípio da razoabilidade (CF, art. 5.º, inc. LIV), flexibilizavam o texto legal para, em casos concretos, afastar o seu rigor. De um modo geral, todavia, até 2004, seguiu-se a férrea posição do STF: crimes hediondos não permitem progressão de regime.

A primeira fissura legislativa nessa hermética disciplina jurídica ocorreu com a lei de tortura (Lei 9.455/1997, art. 1.º, § 7.º), que passou a permitir a progressão de regime nos crimes de tortura. Tentou-se (sobretudo a partir dos votos do Min. Cernicchiaro, no STJ) estender sua incidência para todos os crimes hediondos. Mas mais uma vez o STF fulminou qualquer esperança de liberdade (antes do cumprimento de dois terços da pena) para os autores de crimes hediondos. Firmou jurisprudência no sentido de que a lei de tortura só se aplica à tortura.

Com a nova composição do STF, esse quadro foi se alterando rapidamente (sobretudo no ano de 2005). No HC 82.959-7, rel. Min. Marco Aurélio, onde se discutiu em profundidade a questão, o placar final foi de seis votos (Marco Aurélio, Carlos Britto, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Eros Grau e Sepúlveda Pertence) a cinco (Carlos Velloso, Nelson Jobin, Ellen Gracie, Joaquim Barbosa e Celso de Mello), pela inconstitucionalidade do § 1.º do art. 2.º da Lei 8.072/1990. A decisão do Pleno do STF foi proferida em 23.02.2006.

Observe-se que o STF não concedeu a pretendida progressão de regime no caso concreto. Apenas removeu o obstáculo legal que impedia a análise da progressão em crimes hediondos. Ou seja, dentro de um HC, proferiu-se um julgamento da lei em tese, proclamando sua inconstitucionalidade ?urbi et orbis?.

Aliás, antes mesmo do julgamento final do HC 82.959 (cujos efeitos práticos serão examinados em outro artigo), o STF já vinha concedendo inúmeras liminares para afastar o óbice legal proibitivo da progressão de regime nos crimes hediondos. Dentre outros, podem ser mencionados os seguintes HCs.: 85.270, 85.374, 86.131, 84.122. A decisão de 23.02.06, como se vê, foi o coroamento dessa tendência do Tribunal, cuja Primeira Turma, no HC 86.224, em 07.03.06, resolveu questão de ordem no sentido de que pode cada Ministro decidir individualmente (monocraticamente) os habeas corpus com pedido de progressão de regime.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-Geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais www.lfg.com.br)

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