Reflexos da Lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso) sobre as infrações de menor potencial ofensivo

A Constituição Federal (art. 98, I) instituiu a categoria das infrações penais de menor potencial ofensivo, em cuja definição, de acordo com a apreciação puramente sistemática e literal do artigo 61 da Lei 9.099/95, foram incluídos as contravenções penais (Lei 3.368/41), e delitos a que a Lei Penal comina pena máxima não superior a um ano”. Por sua vez, a Lei 10.259/01 (art. 2.º, parágrafo único), que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, ampliou o citado conceito legal, considerando como infrações de menor potencial ofensivo, aquelas cuja pena máxima cominada em abstrato não são superiores a dois anos (ou multa), que segundo entendimento jurisprudencial e doutrinário dominante derrogou tacitamente o artigo 61 da Lei 9.099/95, devendo ser aplicado também na esfera de competência da Justiça Comum Estadual(1).

Nova polêmica sobre a questão poderá ser instaurada, em razão do disposto no artigo 94 da Lei 10.741, de 1.º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso) ao prever que: “Aos crimes previstos nesta Lei, cuja pena máxima privativa de liberdade não ultrapasse 4 (quatro) anos, aplica-se o procedimento previsto na Lei n.º 9.099, de 26 de setembro de 1995, e, subsidiariamente, no que couber, as disposições do Código Penal e do Código de Processo penal”. Desse modo, para delitos como de “Expor a perigo a integridade e a saúde, física ou psíquica, do idoso (…)”, se do fato “resulta lesão corporal de natureza grave” (art. 99, Lei 10741/03), cuja pena máxima abstrata não excede a quatro anos, será possível a transação penal, desde de que preenchido os requisitos legais, com a conseqüente aplicação de pena “não privativa de liberdade” (arts. 72, 76, §§, Lei 9.099.95).

Sem a pretensão de ditar conclusões levianas sobre essa intrincada questão, aparentemente, o dispositivo novamente ampliou o conceito legal das infrações de menor potencial ofensivo, derrogando tacitamente as disposições anteriores (art. 61, Lei 9.099/95, art. 2.º, parágrafo único, Lei 10.259/01). A luz do princípio constitucional da igualdade (art. 5.º, caput, e inc. I, CF/88, art. 1.º DDHC), um dos pilares do Estado Democrático de Direito (art. 1.º, CF88), que pressupõe a igualdade de tratamento normativo, que tem como destinatário o legislador e o aplicador da lei, posto que, mais do que uma expressão de direito, é um justo modo de se viver em sociedade(2), , não existe, por exemplo, diferença ontológica, entre o tipo penal do artigo 98 da Lei 10.741/03, e o delito de maus tratos qualificado pelo resultado lesão corporal de natureza grave (art. 136,§ 1.º), pois ambos cominam a mesma pena máxima abstrata.

De tal arte, difícil entender que delitos que tem como alvo a proteção de bens jurídico-penais praticamente idênticos (incolumidade da pessoa humana), tenham tratamento legal diferente, somente porque, parafraseando, determinado indivíduo “teve a sorte” de expor a perigo, a vida ou a integridade de um idoso. Apesar da proteção buscada pelo Estatuto, parece paradoxal que o “ataque a um bem jurídico do idoso” (ex. integridade física), não seja considerado tão grave, como a agressão ao bem jurídico de uma criança de tenra idade ou de uma gestante, ou que não mereça uma punição menos severa.

Ainda sob o prisma da questão do bem jurídico, cujo conceito dogmático é atribuído a Birnbaum (meados do século XIX)(3), que possui conteúdo mutável e historicamente variável(4), e numa perspectiva objetivista pode ser definido como “um bem essencial da comunidade ou do indivíduo, que em razão da importância social deve receber proteção jurídica” (5), delitos patrimoniais como o furto simples (art. 155, CP), o dano qualificado (art. 163, parágrafo único, CP), a apropriação indébita (art. 168, CP), ou a receptação (art. 180, CP), tornaram-se infrações de menor potencial ofensivo, portanto, sujeitas a aplicação da transação penal. Isso se conclui porque, ainda que não se admita uma hierarquização dos bens jurídicos tutelados pela Constituição Federal, se o Estatuto permite a transação para crimes que tutelam bens jurídicos, que na sua essência e realidade, são primordiais para qualquer indivíduo, não seria lógico, muito menos sensato, não permitir idêntico benefício para autores de delitos contra o patrimônio. Basta valorar, o que mais importante para o indivíduo, a vida, a integridade ou o patrimônio.

Por outro lado, é necessário analisar com cuidado o raciocínio de que, diante de um possível conflito aparente de normas, o princípio da especialidade constitui obstáculo que impede estender o disposto no artigo 98 do Estatuto, aos delitos catalogados na Parte Especial Código Penal, ou que esse não pode ser aplicado, porque a Lei 10.741/03 não enumerou expressamente as disposições legais que deveriam ser revogadas, como recomenda o artigo 9.º da Lei Complementar 107, de 26 de abril de 200. Na espécie, não existe também qualquer determinação expressa proibindo a aplicação do dispositivo, podendo o interprete se socorrer ao disposto no artigo 4o, II da LICC. Tratando-se de norma penal mais favorável, deve prevalece o princípio constitucional da retroatividade da lei (arts. 5.o, XL, CF/88, 2.o, par. único CP), no caso, sendo permitida a interpretação extensiva em favor do autor do fato (favorabilia sunt amplianda, odiosa restringenda).

Destarte, como a maioria das reformas pontuais, podem produzir contradições e incertezas no sistema jurídico vigente, essa problemática, e outras que venham a surgir, deverão ser submetidas a um amplo e refletido debate, para que o próprio Estatuto do Idoso não se transforme numa “Caixa de Pandora”.

Paulo S. Xavier de Souza – especialista, mestre em Direito Penal pela Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP, advogado da Fund. Prof. Dr Manoel Pedro Pimentel – Funap, coord. do Setor de Ativ. Complementares, e prof. de Exec. Penal e Prática Jurídica Penal da Faculdade de Ciências Jurídicas – UNOESTE, E-mail: paulosouxa@ig.com.br / xavier@direito.unoeste.br.

Notas

(1) Nesse sentido cfr: STJ: HC n. 30.988/RO, 6.ª T, Rel. Min. Paulo Medina, j. em 11/11/03, DJ de 15/12/03, p. 408. HC n.º 30.405/SP, 5.ª T, Rel. Min., Laurita Vaz, j. 4/11/03, DJ de 01/12/2003, p. 386. TJ/SP, SER n.º 383.080.3/0-00, 2.ª CC, Rel. Des. Pires Neto, j. 19.5.03, v. u. TACRIM-SP, RSE n.º 1.317.317/1, 1/ª CC., Rel. Juiz Laércio Laurelli, j. 12/9/02, v. u.

(2) Sobre a questão cfr. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3.ª ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 245 ss. SILVA, José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo. 15.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 217-9.

(3) Cfr. MIR PUIG, Santiago. Derecho penal. Parte general. 4.ª ed. Barcelona: Reppertor S. L. 1996, p. 91. PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 2.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 29-30

(4) Nesse sentido cfr. DIMOULIS, Dimitri. Da “política criminalª à política da igualdade. Revista brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n.º 29, pp. 209-231, Revista dos Tribunais, jan., mar., 2000. JESCHECK, Hans Heinrich. Tratado de derecho penal. Parte general. 4.ª ed. Trad. J. L. M. Somaniego. Granada: Comares, 1993.

p. 06. HASSEMER, Winfried. Introducción a la criminologia y ao derecho penal. Trad. Francisco Muñoz Conde. 1.ª ed. Valência: Tirant lo Blanch, 1989, p. 113-4. CAMARGO, Luiz Antônio Chave. Culpabilidade e reprovação penal. 1.ª ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1994, p 52-3.

(5) Cfr. WELZEL, Hans. Derecho penal alemá: Parte geral. 11.a ed. Trad. J. B. Ramírez e S. Y. Pérez. Santiago do Chile: Editorial Jurídica, 1997, p. 5. Em sentido semelhante cfr. PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 2.ª ed. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1997, pp. 41-2

Paulo S. Xavier de Souza

é especialista, mestre em Direito Penal pela Universidade Metodista de Piracicaba – Unimep, advogado, e professor da Unoeste.E-mail: paulosouxa@ig.com.br  /
xavier@direito.unoeste.br

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